Aspectos Determinantes da Pesquisa Tecnológica e Inovação na Agropecuária¹

1 - INTRODUÇÃO

Propõe-se refletir sobre a pesquisa pública na agricultura alertando que a questão da inovação na agropecuária não se adequa mais ao antigo modelo que separa a geração da transferência, inclusive como tarefas institucionais de órgãos diferentes.

Essa hipótese deriva de outras percepções teóricas sobre pesquisa, inovação e sociedade que permitem analisar a questão sob aspectos não percebidos anteriormente. Objetiva-se comprová-la a partir da contraposição de duas diferentes visões sobre o tema, mostrando a seguir um exemplo prático de orientar-se pelo problema produtivo e gerar solução. Finalizando, apresentam-se propostas de encaminhamento para orientar ações sobre transferência de tecnologia.

 

2 - A TENSÃO CONCEITUAL ENTRE VISÕES DIFERENCIADAS

É frequente a ideia de defesa da autonomia da pesquisa e dos pesquisadores como algo que deva ser preservado a todo custo, pois ela garante o exercício da criatividade, elemento fundamental em todo processo de geração de conhecimento, o que ninguém, com um mínimo de bom senso, descarta, embora muitas vezes a autonomia seja confundida com independência. Esta é caracterizada por uma situação na qual o pesquisador persegue seus objetivos da forma e maneira que achar conveniente, inclusive por contar com recursos que o possibilitam fazê-lo, mas que não precisa dar satisfação para ninguém; enquanto autonomia tem a ver com escolhas metodológicas adequadas, estas sim do conhecimento precípuo e exclusivo do pesquisador, advinda da experiência acumulada e compartilhada pela comunidade científica.

O argumento por trás dessa lógica é de que não se deve desvirtuar a finalidade pela qual existimos, a qual está ligada ao desenvolvimento da ciência. O cientista, sem nenhum vínculo com a realidade direta, mas ligado aos problemas da ciência, e treinado por cientistas, trata de estudar os problemas preponderantes, buscando respostas e confirmações, ou não confirmações, ao desenvolvimento do estado das artes. Em um determinado momento qualquer, esbarra com possibilidades de utilização, a qual será explorada por outros pesquisadores.

Outro pilar deste pensamento explica que dedicar-se a atender demandas dos setores produtivos significa transformar a missão pública de atender a todos para atender a uns poucos, em geral, empresas, setores organizados e voltados ao mercado, enfim, aqueles que têm capacidade de fazer pressão. De um lado, haveria a privatização do setor público e, de outro, o rápido esgotamento do conhecimento científico ao se deixar de desenvolver a ciência para prestar serviços, uma vez que a demanda concretiza-se, em geral, como um rol de problemas produtivos de várias ordens, os quais devem ser atendidos por meio de uma rede capacitada de assistência técnica, seja pública ou privada.

Atualmente esta ortodoxia é confrontada com outras percepções teóricas de cunho mais abrangente, possibilitando explicar, de outra maneira, o que ocorre entre desenvolvimento científico, tecnologia e sociedade, subtraindo a rígida hierarquização que o modelo descrito acima, chamado de linear, propõe, ou seja, que o princípio é a pesquisa básica que se estende para a pesquisa aplicada.

Nas palavras de Stokes2: “a sequência tecnológica (desse modelo) é formada pela pesquisa básica, pela pesquisa aplicada, e pelo desenvolvimento (de produtos e processos). [...] Fica claro que cada um dos sucessivos estágios depende do anterior”.

Essa sequência modelar foi sendo contestada pela realidade do próprio desenvolvimento científico e sua relação com a tecnologia, sendo verificado que suas relações foram intensificando-se evolutivamente do Pós-II Guerra em diante, e atualmente são muito intensivas entre si. Não se pode imaginar progresso na ciência sem progresso na tecnologia e suas relações circulares demonstram esse fato, como a existência de aparelhos e equipamentos (microscópios eletrônicos, por exemplo), permitindo descobertas científicas, que por sua vez geram novas tecnologias. Além do mais, muitas descobertas se deram a partir de experimentação, visando resolver problemas econômicos ou produtivos, sendo o mais emblemático deles o desenvolvimento da pasteurização, por Pasteur, derivado de seus estudos em microbiologia para atender demanda de um segmento industrial de Lille, na França, assim como muitas vezes a tecnologia gerou a necessidade de explicações científicas. Exemplos desse tipo são inúmeros nas engenharias, que são áreas tipicamente tecnológicas, e na medicina, entre outros, conforme se verifica em Stokes3.

Ou seja, o processo ou modelo linear não tinha capacidade para ser universal, e por conta disso não conseguia explicar a ocorrência de certos fatos e/ou fenômenos. Quando isso ocorre em dimensões amplas, acontece o que Kuhn4 chamou de superação de um paradigma5 científico por outro. Isso se dá pelo aparecimento de questões não dedutíveis pela ciência paradigmática, uma vez que as chamadas anomalias contestam o núcleo duro da ciência, teimando em não gerar comprovações que as teorias ou leis gerais permitem deduzir. Começa então a busca por explicações teóricas das anomalias que darão origem a interpretações diferentes, estabelecendo-se, em consequência, novo paradigma.

A evolução da reflexão de Stokes, aliada a sua vivência, levou-o a formular uma nova maneira de classificar as pesquisas, as quais podem ser orientadas por considerações de uso e busca de entendimento fundamental e qualquer possibilidade entre elas, conforme o modelo de quadrantes de pesquisa científica (Figura 1). No quadrante superior à esquerda estão as pesquisas levadas pelo objetivo da busca do conhecimento pelo conhecimento sem qualquer preocupação com uso. Ele é chamado de quadrante de Bohr, por este cientista representar “uma pura viagem de descoberta”6. No quadrante inferior à direita, representado por Edison, inventor da lâmpada, entre outros, e interessado apenas na aplicação sem a busca de explicações científicas para suas descobertas, caso da tecnologia pura. E no quadrante superior à direita classificam-se as pesquisas baseadas em conhecimento científico e inspiradas pelo uso, podendo haver qualquer tipo de combinação entre os eixos do conhecimento e do uso, chamado de quadrante de Pasteur, que usava a ciência para resolver problemas e aplicar as soluções encontradas.

                                                       

Considerações de uso

 

Não

Sim

Busca de entendimento
fundamental?

Sim

Pesquisa básica pura
(Bohr)

Pesquisa básica
inspirada pelo uso
(Pasteur)

Não

 

Pesquisa aplicada
(Edison)

 

Figura 1 – Quadrante de Pasteur.

Fonte: STOKES, D. E. O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica. Campinas: UNICAMP, 2005.

               

Segundo Martins7, o modelo de Stokes é uma ferramenta analítica útil para trabalhar a complexidade da associação entre ciência e tecnologia. E pode orientar ações servindo de parâmetro frente à missão das instituições públicas de pesquisa que, pelo próprio nome, permite deduzir seus objetivos e seu financiamento: proporcionar resultados à sociedade, pois ela nos financia.

A seguir, descreve-se uma trajetória típica da associação da utilização da ciência aplicada para resolver um problema produtivo, o qual pode ser um exemplo a ser seguido de forma institucional.

 

3 - UMA TRAJETÓRIA DE PD&I

A pesquisa aplicada desenvolvida para a agropecuária tem como objetivo o desenvolvimento de novos produtos ou processos que permitam, quando adotados pelos produtores, redução de custos de produção, melhoria na produtividade e na qualidade, combate a pragas e doenças, preservação do meio ambiente, entre outros, ou seja, visa atingir múltiplos objetivos para garantir a sustentabilidade do sistema produtivo. Embora se possa adotar tecnologias oriundas de outros países e produzi-las internamente, tais como tratores e seus implementos, insumos químicos (adubos e agrotóxicos), medicamentos, etc., em função de características universais de utilização, isso não ocorre tão facilmente com a pesquisa de base biológica, que deve ser adaptada/desenvolvida localmente para explorar suas potencialidades e ser duradoura.

É claro que ninguém é contra a importação de tecnologias, mas elas precisam ser estudadas e adaptadas aos locais a que se destinam para que possam trazer bons resultados aos adotantes. Quem têm condições de atender essas adaptações e/ou desenvolvimentos posteriores são as instituições públicas e privadas de pesquisa, universidades, setores de prestação de serviços especializados de assistência técnica, fomento, etc., ou seja, todo o sistema que envolve a geração e transferência de conhecimento, aqui incluídos os próprios demandantes das tecnologias que devem (e têm de) ser agentes ativos nesse sistema.

A seguir, são exemplificados os argumentos acima discorrendo sobre um exitoso processo de adaptação/desenvolvimento de tecnologia em uma unidade de pesquisa da APTA, na unidade-sede do Polo Regional Alta Sorocabana, e sua transferência aos produtores da região de Presidente Prudente no sudoeste do Estado de São Paulo, que é o caso da produção de batata doce isenta de vírus para ser utilizada como material de propagação.

Essa região é responsável por 60% da produção de batata doce no estado e, desde 2004, o setor de pesquisa do polo havia detectado queda na produtividade dessa cultura, que estava associada ao processo de reprodução, feita pelo uso de ramas retiradas das lavouras destinadas à produção, conforme descrito por Montes8.

Nas palavras da autora:

Por meio de uma parceria com CNPH-Embrapa, em 2004, 14 variedades de batata doce foram disponibilizadas para avaliação local e recursos para instalação de viveiros. Os materiais foram avaliados, selecionados para a região, multiplicados por meio de multiplicação rápida em bandejas, e disponibilizados no ano de 2006-2007. Paralelamente, ramas das duas variedades de batata doce mais utilizadas pelos produtores da região foram enviadas para o CNPH-EMBRAPA para limpeza de vírus. Recebemos o material de volta e começamos a distribuição para os produtores.

A tecnologia foi inicialmente adotada por um produtor que aceitou construir um viveiro e utilizar as ramas de batata doce livre de vírus e seus resultados passaram a servir de vitrine, que gerou forte demanda pelas mudas isentas de vírus por outros produtores.

A adoção dessa tecnologia gerou um processo de conscientização do produtor para a necessidade de mudança no sistema de produção envolvendo a produção de batata doce mais precoce, ganho de produtividade e na qualidade do produto, encorajando-o a continuar na atividade.

A introdução da tecnologia passa num primeiro momento pela implantação do protocolo de limpeza e indexação de mudas livres de vírus, a cargo de um laboratório específico para esta finalidade.

Num segundo momento, plantas matrizes oriundas de ramas livres de vírus são transferidas para vasos e mantidas em viveiros telados para produção rápida de mudas em bandejas de isopor e distribuição aos produtores.

Os impactos positivos da adoção dessa tecnologia foram: crescimento da produtividade de 52%, melhorias na qualidade do produto final e redução do uso excessivo de defensivos. Embora os impactos em custos não tenham ainda sido analisados, é de se esperar redução nos custos médios pelo aumento de renda, por força do crescimento da produtividade e pelo menor uso de defensivos. 

A geração dessa inovação para a PD&I tem custos que envolvem, além dos salários, a construção de viveiros e o tratamento das mudas em laboratório, e de despesas, para que ocorra uma difusão efetiva e generalizada, dada a necessidade da criação de outras condições pelo lado de políticas públicas e pela atuação feita por ou em nome dos produtores, ou seja, o processo inicia-se pela detecção do problema seguido da geração da tecnologia e sua transferência para o setor produtivo, tornando-se, portanto, complexo à medida que novas áreas e instituições públicas e privadas vão sendo incorporadas, mostrando-se, por fim, ser uma ação conjunta entre o setor público e o setor privado, em que qualquer falha ou degradação das condições comprometem uma consecução eficaz na adoção e difusão da inovação.

A seguir, procura-se explorar algumas possibilidades, entre tantas outras existentes, de evitar pioras no processo de transferência do conhecimento/tecnologia.

 

4 - PASSEIO NO REINO DA UTOPIA

Pode-se dizer que tudo o que foi escrito até aqui é o chamando óbvio ululante, pois todo mundo já sabe da importância da pesquisa e do sistema que a compõe, tal como descrito acima. Mas a experiência deste autor diz o contrário como decorrência de várias evidências, descrevendo aqui apenas uma delas, recente e de muita importância, quando participou de três encontros regionais do governo estadual, ocorridos em 2011, nas regiões do Vale do Ribeira, Vale do Paraíba e Alta Sorocabana, chamadas de governo presente, cujo intuito era de ouvir as demandas das sociedades locais/regionais.

Uma parte da dinâmica desses encontros era que cada Secretaria de Governo ouvisse diretamente os representantes da sociedade. No caso da Secretaria de Agricultura, foram atendidos prefeitos, vereadores, lideranças formais do setor agropecuário, etc. Em nenhum desses três encontros apareceu demanda por pesquisa, tecnologia e inovação, embora sejam regiões de forte presença do agro na formação da renda e emprego. O que foi priorizado pelos interlocutores da sociedade estava relacionado à infraestrutura (estradas vicinais/rurais) e, de longe, à assistência técnica e extensão pública.  

Não se pode negar a importância dessas questões. Mas o que é preocupante é a ausência da compreensão sobre a pesquisa agropecuária de pessoas que têm o poder e acesso aos principais mecanismos de decisão sobre a destinação de recursos públicos.

A importância da pesquisa para o desenvolvimento da agropecuária já está comprovada por inúmeros trabalhos científicos, embora divulgados principalmente entre os pares, estes com pouca visibilidade na sociedade em geral. Assim, vale o esforço de escolher uma categoria que possa receber tais informações e servir de caixa de ressonância. Ou seja, uma opção válida seria a de desenvolver ações estratégicas de marketing institucional com representantes políticos nas Assembleias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais, inclusive para fortalecer a participação da área da pesquisa nas audiências públicas que definem os orçamentos do tesouro estadual a cada ano.

Em paralelo, outra ação pode ser um caminho já trilhado no passado e que pode e deve ser revigorado, qual seja o de ampliar a interação com órgãos de assistência técnica e extensão rural, cujo público alvo são os produtores rurais e suas respectivas representações como associações, cooperativas, conselhos rurais e lideranças, com objetivo de criar condições para o desenvolvimento social e econômico do setor9, recuperando, também, os conselhos externos institucionais, que podem dar corpo e influir na direção dos trabalhos dessas instituições10.

Em resumo, incluir de maneira mais interativa e incisiva nos programas de transferência de conhecimento/tecnologia das instituições públicas de pesquisa novos segmentos de público, os quais têm poder de influência e de decisão para evitar a deterioração dos investimentos públicos em pesquisa, e seus reflexos adversos na renda e empregos do setor rural.

Por outro lado, vencer as resistências dos atores internos e externos que compõem a estrutura do sistema de CT&I, dos governantes e do próprio setor agropecuário não é uma tarefa simples, daí justifica-se o título desta seção ser uma utopia, embora se possa ter uma tênue esperança de que é uma utopia possível, somente porque se deve acreditar que a esperança é a última que morre.

Finaliza-se relembrando que esta reflexão nos remete ao já citado Decreto n. 46.488 que, em seu artigo 1º, descreve a missão da APTA como sendo a “(de) gerar, adaptar e transferir conhecimentos científicos e tecnológicos para os agronegócios, visando o desenvolvimento socioeconômico e o equilíbrio do meio ambiente”. Tudo está dito aí.

 

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1Este artigo é uma versão revista e ampliada do texto publicado pelo autor “Importância da pesquisa tecnológica e inovação na agropecuária”. Casa do Produtor Rural, São Paulo, 27 fev. 2014. Disponível em: <http://www.esalq.usp.br/cprural/artigos.php?col_id=48>. Acesso em: jan. 2015.

 

2STOKES, D. E. O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica. Campinas: UNICAMP, 2005.

 

3Op. cit. nota 2.

 

4KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. 257 p.

 

5O paradigma científico, em poucas palavras, estabelece as questões e as formas de interpretá-las teoricamente. Fixa o padrão. No correr da chamada ciência normal, segundo Kuhn, essas questões são estudadas exaustivamente buscando-se suas falseabilidades ao mesmo tempo em que referendam provisoriamente as leis gerais do paradigma científico.

 

6Op. cit. nota 2.

 

7MARTINS, M. A. G. Publicações científicas e avanços tecnológicos: resultados associados do quadrante de Pasteur. Cadernos de Ciência e Tecnologia, Brasília, v. 16, n. 3, set./dez. 1999.

 

8MONTES, S. M. N. M. Utilização de mudas isentas de vírus como material de propagação para a cultura da batata-doce. Pesquisa e Tecnologia, São Paulo, n. 1, 2012. Edição especial. Disponível em: <http://www.aptaregional.sp.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&layout=edit&id=1100>. Acesso em: jan. 2015.

 

9Ver a ação integrada desenvolvida pela CATI/DDD-APTA, da SAA, em que se buscou “prospectar demandas junto aos públicos do meio rural, estreitar relações, incrementar os canais de comunicações, fornecer orientações técnicas e gerar transferência de conhecimentos; e criar uma interação entre os pesquisadores da APTA Regional com a extensão rural CATI (EDR), ITESP, Universidades Estaduais, empresas privadas entre outros”. AGÊNCIA PAULISTA DE TECNOLOGIA DOS AGRONEGÓCIOS REGIONAL – APTAREGIONAL. Territorialidade e inovação. São Paulo: APTAREGIONAL. Disponível em: <http://www.aptaregional.sp.gov.br/index
.php?option=com_content&view=category&id=20&Itemid=141>. Acesso em: jan. 2015.

 

10Ver Decreto n. 46.488, que reorganizou a APTA, e os artigos 84, 85 e 86 referentes aos Conselhos de Pesquisa e Desenvolvimento e os Colegiados dos Centros de Pesquisa Tecnológica, os quais contemplam em sua composição, representantes de órgãos externos e do setor agropecuário. SÃO PAULO (Estado). Decreto n. 46.488, de 08 de janeiro de 2002. Reorganiza a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 9 jan. 2002.

Palavras-chave: ciência, tecnologia, instituições públicas de pesquisa.



Data de Publicação: 30/01/2015

Autor(es): Alceu De Arruda Veiga Filho Consulte outros textos deste autor