Preços de mercadorias medidos com base em mercadorias: algodão, soja e milho

            A intensidade do progresso técnico e as transformações estruturais da agropecuária e das lavouras de milho e de algodão não alteraram de forma significativa a relação de preços recebidos no período 1948-2005. Assim, permanece válido, numa leitura de longo prazo em situação de normalidade, o velho parâmetro da sabedoria caipira de que uma arroba de algodão vale um saco de milho. Em outras palavras, essa situação não se altera de forma significativa, ainda que ambos os relativos de preços algodão/milho tenham mostrado enorme amplitude de variação entre anos (figura 1).

Figura 1 - Relação entre preços recebidos pelos produtores de algodão e de milho, Estado de São Paulo, médias anuais 1948-2005 (até outubro)

Fonte: dados básicos do Instituto de Economia Agrícola (IEA)

            A cotonicultura da Zona Meridional, originária do colonato do café, a despeito de sua modernidade, entrou em crise no final dos anos 1980, em função de surto de importação derivado da abertura abrupta do mercado brasileiro. Nos primeiros cinco anos da década de 1990, apresentou acentuada redução de oferta1.
            Em seguida, noutras bases, emergiu uma nova cotonicultura no Brasil Central, que ocupou primeiro áreas do Mato Grosso e depois do Oeste da Bahia, estruturada em lavouras de grande dimensão com o uso intenso de mecanização do plantio à colheita. Assim, a produção brasileira recuperou-se e, novamente, atingiu os patamares antes obtidos na velha cotonicultura da Zona Meridional, agora minoritária. Essa nova cotonicultura de escala, praticada em número reduzido de grandes propriedades, integra a estrutura de produção de commodities dos cerrados do Brasil Central, centrada nos grãos e fibras.
            Portanto, é interessante correlacionar os preços do algodão não mais com o milho, mas com a soja, a mais relevante lavoura deste novo ciclo de expansão. Nesse caso, uma arroba de algodão em termos relativos corresponde a pouco mais que meia saca (30 kg) de soja e essa proporção mostra pouca variação no período 1948-2005 (figura 2).

Figura 2 - Relação entre preços recebidos pelos produtores de algodão e de soja, Estado de São Paulo, médias anuais 1948-2005 (até outubro)

Fonte: dados básicos do Instituto de Economia Agrícola (IEA)

            A importância dessa relação de preços revela-se quando se agrega a informação de que grande parcela dos grandes produtores de soja é também plantadora de algodão. Esses produtores escolhem a cada ano, em função de preços relativos, a proporção da área a ser plantada com cada uma das duas culturas.
            Nas últimas quatro safras, há nítida prevalência da soja, cujos preços evoluíram de forma mais favorável que os do algodão, com a relação entre ambos mantendo-se muito abaixo da paridade acima definida. Tanto assim que, para a safra 2005/2006, se espera significativa redução de área de algodão, com projeção de menor produção, como decorrência da crise verificada na safra 2004/05 2.
            Esse desestímulo decorreu da conjunção de fatores como ocorrência de seca, custo elevado do crédito pelos juros elevados, perdas de preços em moeda brasileira decorrente da taxa de câmbio inferior à dos anos anteriores e preços internacionais cadentes em função da elevada oferta. O prognóstico para a soja, mesmo sofrendo também os efeitos da conjuntura desfavorável, permite visualizar desempenho melhor, com o aumento da sua proporção na composição da área de plantio das grandes propriedades do Brasil Central, ainda que tenha redução na sua área plantada brasileira.
            Por fim, verifica-se que, numa perspectiva de longo prazo, as relações de preços das commodities consideradas (algodão, milho e soja) não se alteraram de maneira significativa, numa leitura mais ampla e conjunta das suas seqüências, apresentando trajetórias de prazo mais largo paralelas ao eixo das abscissas (figura 3).

Figura 3 - Relação entre preços recebidos pelos produtores de commodities agropecuárias, Estado de São Paulo, médias anuais 1948-2005 (até outubro)

Fonte: dados básicos do Instituto de Economia Agrícola (IEA)

            Assim, as transformações estruturais de cunho tecnológico e de deslocamento espacial dentro do território brasileiro, que envolveram essas lavouras e que foram significativas em termos de ganhos de produtividade, não alteraram os relativos entre os preços das referidas culturas nessa perspectiva de longo prazo, ainda que sejam verificadas oscilações importantes no curto prazo. Noutras palavras, na realidade brasileira as relações entre os preços dessas commodities concorrentes em área tendem a oscilar em torno de patamar similar no médio e longos prazos.
            As mútuas determinações produziram comportamentos de preços que convergem para uma realidade de normalidade em termos de relativos. Em função disso, se no longo prazo as relações de preços dessas commodities agropecuárias tendem a manter o mesmo patamar, também os respectivos preços percorrem trajetórias paralelas de evolução; ou seja, para a variação de preços normais numa proporcionalidade em que uma arroba (15 kg) de algodão equivale em torno de uma saca de milho (60 kg) e próximo a meia saca de soja (30kg).
            Como o valor das mercadorias reflete o trabalho necessário à sua produção, o progresso técnico, ao aumentar a produtividade desse trabalho, reduz o valor dessas mercadorias, mas em proporções similares em função de sua generalização no espaço produtivo, formando assim preços normais cadentes na representação gráfica de curvas paralelas.
            Assim, ao visualizar as curvas de relações de preços das commodities analisadas, vem à mente as colocações de Karl Marx sobre as oscilações de preços nos mercados. Dizia ele, em pleno século XIX, que 'a oferta e a procura só regulam as oscilações temporárias dos preços no mercado. Explicam por que o preço de um artigo no mercado se eleva acima ou desce abaixo do seu valor, mas jamais explicam esse valor em si mesmo. Vamos supor que a oferta e a procura se equilibrem ou, como dizem os economistas, se cubram mutuamente. No preciso momento em que essas duas forças contrárias se nivelam, elas se paralisam mutuamente, deixam de atuar num ou noutro sentido. No mesmo instante em que a oferta e a procura se equilibram e deixam, portanto, de atuar, o preço de uma mercadoria no mercado coincide com seu valor real, com o preço normal em torno do qual oscilam seus preços no mercado. Por conseguinte, se queremos investigar o caráter desse valor, não devemos nos preocupar com os efeitos transitórios que a oferta e a procura exercem sobre os preços de mercado'3

Ciclo do algodão se sustenta

            A análise da evolução do algodão brasileiro, que sofreu profundas transformações desde os anos 1940, se mostra muito elucidativa desses fatos. Um ciclo expansivo da produção de algodão, que num primeiro momento surgiu como opção para a crise do café, sustenta-se a partir dos anos 1940.
            Esse produto foi estimulado como alternativa para os colonos e outros pequenos proprietários que adquiriram as terras decorrentes do fracionamento das grandes fazendas cafeeiras. Esse processo, desencadeado na órbita privada pela Companhia Agrícola Imobiliária e Colonizadora (CAIC), envolveu fazendas tradicionais como a Companhia Agrícola Fazenda Dumont, onde os 6.033 hectares foram divididos em 171 proprietários com área média de 35,28 hectares4.
            Essa experiência privada, de fragmentação das antigas fazendas de café desde os anos 1930, permitiu que a CAIC fosse o motor da expansão da fronteira agrícola, atuando diretamente na Alta Paulista. Na região de Ribeirão Preto, até 1955, foram vendidos 58,97 mil hectares distribuídos em 945 lotes de 62,40 hectares de área média. Em todas a regiões paulistas produtoras de café até a mesma data, foram comercializados 334,70 mil hectares formando 6.260 lotes de área média de 53,47 hectares5
            Esse modelo fundiário de pequenas propriedades teve similar e concomitante difusão no Norte do Paraná, por obra da Companhia de Terras do Norte do Paraná (CIANORTE), não apenas com o café mas também com o algodão que foi implantado nesse espaço geográfico6.
            Esse modelo de produção de algodão com base em pequenas áreas de lavoura combinava intenso progresso técnico com colheita manual. Isto, dada a limitação de braços, não apenas contemplava uma alternativa para as pequenas propriedades como também a produção nas grandes se dava em regime de arrendamento ou parceria (ou a combinação de ambos), o que acabava por estruturar essa cotonicultura com base na pequena produção com enorme dinamismo inovador.
            Esse processo de expansão do moderno algodão brasileiro da Zona Meridional foi sustentado por políticas públicas ativas, em especial do Governo do Estado de São Paulo. Isto acabou por configurar um caso de sucesso na construção da modernidade técnica na agropecuária de países em desenvolvimento, com amplo reconhecimento internacional7.
            O fato é que essa cotonicultura configura-se como atividade estruturada em pequenas lavouras com intenso processo inovativo, elevando a produtividade e a qualidade da fibra. Nessa condição, nas conjunturas de preços desfavoráveis, o milho era a lavoura alternativa pela sua rusticidade e por representar uma commodity de demanda expressiva, além de permitir colheita manual e fornecer trabalho para a família na mesma época que o algodão.8
            A concorrência desleal do algodão em pluma estrangeiro subsidiado na origem levou à derrocada da cotonicultura da Zona Meridional nos anos 1990. As importações foram favorecidas, além do câmbio sobrevalorizado no período 1994-1999, pelas aquisições com prazos de 360 a 420 dias e juros de 4 a 7% ao ano no financiamento frente a juros reais elevados para capital de giro no mercado interno. No final da década anterior, já haviam sido zerada a proteção e desmontada a estrutura de políticas públicas paulistas para o algodão, sofreu os impactos do surto de importação de algodão dos anos 1990, quando o Brasil chegou a ser a principal nação importadora mundial.
            Esse processo desestruturou de forma definitiva a produção com base em pequenos e médios algodoais e abriu espaço para o crescimento das grandes lavouras mecanizadas da cotonicultura dos cerrados, com a desvalorização cambial de 1999 e o estímulo das elevadas renúncias de receitas tributárias pelos mecanismos da guerra fiscal.9

___________________________________
1 Sobre a crise da cotonicultura da Zona Meridional e a emergência da nova cotonicultura do Brasil Central ver GONÇALVES , José S. Crise do algodão brasileiro pós abertura dos anos 90 e as condicionantes da retomada da expansão em bases competitivas. Revista Informações Econômicas 27 (4):7-25, 1997. Uma visão sintética e consistente pode ser vista ainda em FAVERET, Paulo Algodão: crise e retomada. Informe Setorial n° 11. BNDES. Rio de Janeiro (RJ). Outubro de 1997.
2 As primeiras estimativas da safra 2005/2006, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) prognosticam uma queda mais expressiva da área de algodão herbáceo (-28,07%) que a da soja (-6,39%), ou seja, indicando a manifestação do quadro acima descrito. Ver IBGE. Safra deve ser 12,20% maior em 2006. IBGE, Rio de Janeiro (RJ). Novembro de 2005. (site www.ibge.gov.br, capturado em 8/11/2005).
3 O texto citado está em MARX, Karl. Salário, preço e lucro. Abril Cultural. São Paulo (SP). 1982. págs. 135-185. (Os Economistas).
4 Interessante ressaltar que se trata da fazenda que havia pertencido a Henrique Dumont, pai de Alberto Santos Dumont, um dos barões do café paulista. Ver ARAÚJO, Jadir. Aspectos da formação da agricultura de Dumont. FCAVJ/UNESP. Jaboticabal (SP). 1979. 32p. (Trabalho de Graduação).
5 Nem sempre essa origem estrutural de pequenas propriedades da cotonicultura meridional é considerada nas análises da agropecuária paulista. Ver ZAMBONI, Silvio Perini. O café no norte paulista: a crise de 1929 na Fazenda Dumont. ESALQ/USP. Piracicaba (SP). 1979. 87 p. (Dissertação de Mestrado).
6 O Norte do Paraná complementa o espaço geográfico onde desenvolveu-se o denominado Algodão da Zona Meridional. Sobre a ocupação do Norte Paranaense ver PADIS, P.C. Formação de uma economia periférica: o caso do Paraná. Hucitec. Curitiba. 1981.
7 Para as políticas públicas ver URBAN, Maria L. P et al Estado e Produção Textil: Uma Discussão de Políticas Públicas Revista Informações Econômicas 25(11):37-67, 1995. e sobre o reconhecimento internacional ver AYER, H. W. The costs, returns and effects of agricultural research in a development country: The case of cotton seed research in São Paulo, Purdue University, Purdue, 1970.
8 Os autores fazem o reconhecimento ao Pesquisador Científico Milton Geraldo Fuzatto, que há várias décadas atua, com dedicação própria de sacerdócio, na pesquisa com algodão no Instituto Agronômico da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (IAC-APTA). Seu conhecimento e suas contribuições para a cotonicultura brasileira têm valor inestimável. Foi Milton que, em função da sua vida em constante interação com cotonicultores desde os anos 1950, chamou a atenção dos autores para o parâmetro de preços algodão/milho.
9 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-117/2005.

Data de Publicação: 11/01/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor