Sociedades em rede e a agricultura

                Está em curso uma nova ordem mundial, em que se verifica a intensificação das relações sociais em escala. É um processo não-acabado, que avança no sentido de configurar uma sociedade universal como uma sociedade civil mundial, desenraizando, deslocando indivíduos e idéias e construindo uma desterritorialização generalizada, fundada principalmente na mídia.
            Neste contexto, o Estado perde seu papel de protagonista da economia global para a convergência de quatro forças: o capital, as corporações, os consumidores e as comunicações. Com o fortalecimento das organizações internacionais, transforma-se o Estado-Nação em seu papel e relações de poder.
            Da perspectiva da economia, da sociedade e da cultura, tem-se abordado a sociedade em rede1, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social. O conceito tem-se revelado também presente em estudos da área organizacional, administrativa e empresarial.
            O conceito de rede desempenha um papel central na sociedade da era da informação. Desta forma, rede é um conjunto de nós interconectados, onde o nó é o ponto em que uma curva se encontra com outra, o que depende do tipo da rede concreta. São mercados de bolsa de valores e suas centrais de serviços auxiliares avançados na rede dos fluxos financeiros globais; são conselhos nacionais de ministros e comissários da rede política; são campos de coca e de papoula, laboratórios clandestinos e pistas de aterrissagem secretas, gangues de rua, instituições de lavagem de dinheiro na rede de tráfico de drogas que invade as economias, sociedades e Estados no mundo inteiro. Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, e em tempo real, integrando novos nós desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação2.
            A nova economia também está organizada em torno de redes globais de capital, gerenciamento e informação, cujo acesso a 'know-how' tecnológico é fundamental para a produtividade e a competitividade. O capital funciona globalmente como uma unidade em tempo real; é percebido, investido e acumulado principalmente na esfera de circulação, ou seja, como capital financeiro. O processo de trabalho é cada vez mais individualizado e a mão-de-obra é desagregada no desempenho e reintegrada no resultado, através de uma multiplicidade de tarefas interconectadas em diferentes locais. A nova divisão de trabalho é mais baseada nos atributos ou capacidades de cada trabalhador do que na organização da tarefa3.
            O sistema capitalista, através da concorrência, cria suas contradições internas, brechas, que podem ser aproveitadas em prol da democratização da comunicação, através do surgimento e barateamento das novas tecnologias, proliferação de equipamentos e facilidades de transmissão4. Como exemplo, é citado o desenvolvimento de programas e oferta de sites disponibilizados pelos bancos a seus clientes. Mas, embora seja factível o acesso de clientes a tais benefícios, não se deve negligenciar a estreita faixa para a qual estes se estendem, levando-se em consideração não apenas os possuidores de conta bancária, mas a população como um todo. Sem contar que, além de conta bancária, o indivíduo necessita de uma 'cultura' específica para desempenhar as tarefas informacionais.
            Ao considerar a parcela da sociedade que possui acesso e educação para se incluir na sociedade informatizada, admite-se que os meios de comunicação desenvolvem novos caminhos, multidimensionais, integrando em certa medida linguagens, ritmos e saber acesso ao conhecimento. Através da internet e das tecnologias de multimídia, são de fato estimuladas a interatividade e a criatividade humana. Resta saber para quem e para quantos está sendo possível.
            Contendo as contradições inerentes à sociedade capitalista, o desenvolvimento da multimídia e das novas formas interativas de acesso à informática cria um novo território de disputa e luta na sociedade, onde se inserem, além das redes de movimentos sociais, os agentes do mercado e do setor estatal 5.
            Na era da informação, é inegável que as funções e os processos dominantes estão organizados cada vez mais em torno de redes conforme Wolfe e que 'redes constituem a nova morfologia socialde nossas sociedades, e a difusão da lógica de rede modifica substantivamente a operação e o resultado dos processos de produção, experiência, poder e cultura6.
            Na sociedade contemporânea, o conceito de rede tem sido utilizado em várias esferas. Assim, a economia, a sociedade e a cultura vêm sendo estudadas como uma sociedade em rede.
            Com o processo de democratização da sociedade, novas concepções de desenvolvimento vêm se delineando sobre três instâncias: o Estado, o Mercado e a Sociedade Civil7. As principais correntes teóricas do pensamento atual, na área de pesquisa dos movimentos sociais, também mostram a tendência em utilizar esses três elementos.
            De fato, diversas manifestações de redes vêm se configurando sobre uma heterogeneidade fundada na diversidade de origens, lógicas e trajetórias, mas que, apesar disso, mantém articulações que se integram em uma nova unidade. Assim, tem-se as redes de solidariedade, referentes aos movimentos sociais, bem como as redes estratégicas - focalizadas pelas abordagens instrumentalistas correntes na área de administração de empresas, que expressam o novo arranjo de funções produtivas e administrativas dentro e entre empresas.
            Essas redes estão intimamente ligadas ao desenvolvimento das redes físicas e de recursos comunicativos, embora se tratem aqui de redes sociais ou formas de organização humana de articulação entre grupos e instituições. Este é o mais novo território de disputa e luta na sociedade. As redes de movimentos sociais utilizam-se das redes tecnológicas disponíveis para a troca de informação (horizontal), com o objetivo do fortalecimento de suas estratégias de conquista do espaço na sociedade8.
            As redes de comunicação e informacionais estimulam interesses inter-disciplinares, nos quais especialistas em informática começam a se interessar pelas ciências humanas, cientistas sociais atuam em conferências informatizadas, sindicalistas enviam e recebem dados via satélite, participando todos desta forma de redes .
            A análise das transformações sociais mais recentes e o surgimento de novas redes evidenciam duas vertentes: a) na esfera privada, as transformações das empresas capitalistas ocidentais, aglutinadas em redes estratégicas, caminham para a flexibilização e o emagrecimento, especialmente da grande corporação capitalista, abrangendo uma gama diversificada de novas relações entre formas de 'empreendimentos econômicos'; b) na esfera pública, ocorrem mudanças no relacionamento entre o Estado e a Sociedade, através da criação das redes de solidariedade (ONGs). Tanto uma quanto a outra acabam por questionar a fronteira entre o quadro institucional e o sistema, assim como a própria consolidação das esferas de público e privado. Como desdobramentos, pode se ter tanto um processo de convivência democrática quanto uma concentração - monopólio de cartéis das telecomunicações 9.

Agricultura familiar

            Do ponto de vista prático, vem sendo desenvolvido projeto no sentido de dar apoio técnico organizativo para a estruturação de uma Rede da Agroecologia Familiar (Projeto MDA-EMBRAPA-FUNDEPAG), na medida em que se demonstrou que o movimento social paulista está pronto para a articulação em rede. O IEA participa desse projeto através da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA) e da FUNDEPAG.
            De início, foi identificado o interesse na criação de uma rede dos agricultores familiares e suas organizações (Projeto financiado pela SAF/MDA), além de organizações não-governamentais (ONGS) envolvidas diretamente com quilombolas, agro-extrativistas, assentados, consumidores, economia solidária, fóruns de agricultura urbana e segurança alimentar.
            Espera-se com este trabalho criar uma articulação estadual da agricultura familiar, com os movimentos interessados em construir novas formas de organização social. Nesse caminho, o objetivo é beneficiar majoritariamente os agricultores familiares orgânicos e as organizações ambientalistas e de economia solidária na construção de uma identidade para além da agricultura familiar e dos grupos hoje organizados. Pretende-se dessa forma estimular a integração desses grupos com as instâncias de maior abrangência geográfica, do nível regional-local para o inter-regional-estadual , estadual e nacional.10

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1 CASTELLS, M. A Sociedade em Rede (a Era da informação: economia, sociedade e cultura, v.1) São Paulo, Paz e Terra, 1999
2 SOUZA, M. Vieira de, Redes de Comunicação no terceiro milênio: um desfio para a cibercidadania (http://www.aya.org.ar/congresso 2002)
3 Idem 1
4 Idem 2
5 Idem 2
6 WOLFE, Alan Três Caminhos para o Desenvolvimento: mercado, Estado e Sociedade Civil: In: Desenvolvimento, Cooperação Internacional e as ONGs. Rio de Janeiro, IBASE, PNUD, 1992
7 RANDOLPH, r. Novas redes e novas territorialidades, Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ. mimeo, 1993, 20p.
8 Idem 6
9 idem 7
10Artigo cadastrado no CCTC-IEA sob número HP-129/2005.

Data de Publicação: 06/02/2006

Autor(es): Nilce da Penha Migueles Panzutti (panzutti@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor