Alta carga tributária e o modelo ultrapassado de finanças públicas

           A discussão sobre a tendência de crescimento e do elevado patamar atingido pela carga tributária brasileira está na ordem do dia nas pautas de diversos veículos da mídia, bem como integra o desafio de diversos grupos de pesquisa em economia e finanças públicas. Não apenas isso tem mostrado que as finanças públicas brasileiras absorvem parcelas cada vez maiores do produto nacional como também os governos federal e estaduais têm se esmerado na definição e adoção de medidas 'de redução dos impostos'.
            Um verdadeiro arsenal de legislação nesse sentido vem sendo adotado. Envolve diversas medidas, denominadas 'medidas do bem', como se as receitas públicas obtidas com tributos e taxas representassem, necessariamente, 'uma face típica do mal', na versão vigente do lombrosionismo tributário. Assim, a discussão deve evitar que se distorça a realidade e confunda a opinião pública, o que dificultaria a solução do problema. Além do mais, deve contribuir para que sejam mostradas as falácias inerentes a muitas medidas tomadas.
            A primeira questão a ser apropriada de forma devida corresponde à verdadeira trajetória da carga tributária brasileira no período recente. A discussão deve ser inserida no correto contexto da verdadeira revolução das finanças públicas brasileiras operada desde a metade da década de 1990, que caminha para a plenitude da responsabilidade fiscal e para a construção dos contornos definitivos da solução do déficit público brasileiro, este sim o mote que colocou a questão fiscal na agenda do debate nacional.
            Até o final dos anos 1970, recursos públicos financiavam o investimento e o desenvolvimento, distribuindo benesses fiscais de toda natureza, e o problema era simplesmente ignorado. Quanto o Estado Nacional se viu privado do padrão de financiamento gestado na metade dos anos 1960, que se esgotou no final dos anos 1970 e persistiu nas décadas seguintes, passou a ser cada vez mais fundamental enfrentar a solução desse constrangimento que afeta diretamente o patamar dos juros.
            Para ficar apenas nos exemplos setoriais, esse endividamento financiou a modernização da agropecuária, tornando-a tão moderna quanto as mais avançadas no mundo; produziu o investimento na agroindústria de bens de capital e insumos que sustenta padrão de inovações tecnológicas líderes em lavouras tropicais e se mostra compatível com as desenvolvidas estruturas internacionais; e por fim estruturou a agroindústria de processamento de alimentos que impulsionou a agregação de valor em segmentos estratégicos da agricultura brasileira.
            Em função desses gastos públicos, a agricultura brasileira adentrou na era dos agronegócios, tornando o Brasil um dos New Agricultural Countries (NACs) que é como se denominam os países de agricultura desenvolvida. Do lado da mudança da dinâmica econômica, os gastos públicos financiaram transformações estruturais essenciais para o Brasil moderno. Se há crítica consistente a ser feita, esta consiste exatamente em mostrar os efeitos profundamente regressivos dessas políticas, que produziram uma das piores distribuições de renda do mundo, colocando uma imensa massa de brasileiros à margem da modernidade.
            Mais que a iniqüidade econômica e social, a crise fiscal atual revela-se como problema perene e sem solução consistente, desde a entrada dos anos 1980, do processo de desenvolvimento lastreado no padrão de financiamento sustentado no endividamento público. Até mesmo a dívida externa das empresas foi estatizada em determinados momentos da política econômica brasileira. Assim, a discussão séria deve ser sempre pautada pelo reconhecimento dos efeitos altamente benéficos dos dispêndios públicos na construção da modernidade e pelo fato de que parcela relevante da dívida pública atual decorre exatamente do estoque, elevado e não depreciado, do endividamento realizado nos anos 1970.
            Talvez, ainda hoje a austeridade e a responsabilidade fiscal não tivessem tanta relevância na pauta do debate nacional, se as taxas de crescimento da economia fossem mais elevadas e persistentes nesses últimos 25 anos de 'vôos de galinha' entremeados com a 'síndrome de avestruz' que enfia a cabeça no buraco pensando proteger-se dos predadores. Mas o problema da magnitude da carga tributária existe e tem de ser enfrentado, haja vista que simplesmente não há mais espaço para seu crescimento e tal como está compromete os ajustes macroeconômicos necessários à construção de um novo padrão de financiamento que nos conduza a um novo ciclo de desenvolvimento nacional.
            Porém não se pode realizar tal intento sob efeitos da 'síndrome de avestruz' que impede que sejam aquilatadas a magnitude do problema e a amplitude das soluções. A primeira providência consiste em apresentar à opinião pública para o debate uma leitura consistente, não apenas do que representou historicamente o gasto público mas que também suprima argumentos absurdos do tipo 'o contribuinte brasileiro paga muito e recebe pouco em qualidade e intensidade de serviços públicos'.
            Muito do que se usufrui do padrão de vida moderno foi produzido como decorrência do gasto público passado que gerou passivos públicos presentes e, portanto, está sendo pago em prestações ainda que amargas pela carga tributária atual. As despesas correntes são minoritárias nos gastos governamentais atuais frente à previdência social e aos juros da dívida pública. E o respeito aos contratos, tão caro aos analistas econômicos, dificulta ajustes mais rápidos e consistentes.
            Outra providência consiste em analisar de forma adequada a verdadeira trajetória da carga tributária brasileira para que não se produzam exercícios econométricos sem lastro na realidade, como a que afirma que, na tendência dos gastos públicos, a carga tributária brasileira atingiria o inimaginável patamar de 54% do PIB nos próximos 20 anos1. Esses exercícios prospectivos hão que ser embasados em sustentações empíricas mais consistentes e em conteúdos conceituais adequados para que não produzam confusão ainda maior na opinião pública e, com isso, dificultem ainda mais a solução do problema que pretendem estudar e contribuir para equacionar.
            Aliás, há que se fazer a apropriação correta dos resultados dos estudos que mensuram a carga tributária brasileira. Interessante refletir sobre os resultados do trabalho recente de dois dos mais respeitáveis estudiosos brasileiros de finanças públicas, José Roberto Afonso e Beatriz Barbosa Meirelles, conforme notícia obtida na imprensa2.
            Desde logo, concorda-se que há um nítido exagero no crescimento recente da carga tributária, devido ao não-equacionamento do estoque de despesas compromissadas e à ampliação inconsistente com a responsabilidade fiscal no longo prazo de despesas correntes que configuram patamares permanentes de dispêndios como a reposição ampla de pessoal. A carga tributária formal cresceu dos patamares de 24% do PIB nos finais dos anos 1980 para níveis em torno de 30% do PIB na metade dos anos 1990 e saltou para índices superiores a 35% do PIB nos anos recentes. Também fica patente que a carga tributária brasileira em 2005 (38,9% do PIB) atingiu patamares superiores a países de mesmo estágio de desenvolvimento e similar à média de países industrializados (38,8% do PIB).
            Também se mostra correto que, para padrões precários de justiça social, a carga tributária brasileira penaliza a população com pagamento de tributos similares aos de países europeus. Isto, entretanto, revela o preço que o presente está pagando pelo postergamento da solução desse problema nacional no momento oportuno do passado, compatível com a trilha histórica de uma nação que evolui como uma sociedade de história lenta, cuja face se manifesta nas transformações sem ruptura, em pseudomorfoses que produzem o desenvolvimento pela linha de menor resistência sem o enfrentamento de privilégios e interesses que são perenizados nesse devir nacional peado pelo conservadorismo3.
            Dentro de um contexto factual mais amplo, apenas o olhar sobre o gráfico de tendência de evolução da carga tributária brasileira revela realmente uma evolução insustentável a médio prazo do comprometimento do produto nacional com tributos. Isso seria resolvido com crescimento do produto, mas esse crescimento, dadas as condições macro-econômicas, coloca em prioridade a solução da questão fiscal.
            A carga tributária mensurada nessas estatísticas corresponde ao que poderia denominar carga tributária formal, ou seja, para usar uma terminologia do debate político presente, consiste em 'recursos fiscais contabilizados'. Assim, há que ser devidamente contextualizada e mediatizada pela realidade do desenvolvimento da economia brasileira.
            Tem-se claro que nem sempre os recursos que financiaram os gastos públicos são 'recursos fiscais contabilizados'. O exemplo mais nítido dessa prática é o padrão de financiamento do Plano de Metas JK (1957-1961), lastreado no imposto inflacionário, ou seja, gasto público financiado pela emissão primária e arcado por toda população que o pagou nos preços majorados em função do processo inflacionário4.
            Na mesma linha de interpretação, o financiamento dos gastos públicos com base nos impostos inflacionários poderia ser denominado de 'recursos fiscais não-contabilizados', para usar um termo da moda. A verdadeira evolução dos recursos administrados nas políticas governamentais não corresponde necessariamente à evolução da carga tributária formal medida apenas pelos 'recursos fiscais contabilizados'.
            Ao olhar para a tendência manifesta no gráfico de carga tributária, duas importantes medidas conquistadas pelas políticas públicas brasileiras tornam impróprias projeções para o futuro de indicadores macroeconômicos. A primeira consiste na não-consideração dos 'recursos fiscais não contabilizados' decorrentes da apropriação pelo estado de recursos via inflação no período anterior a 1994 (Plano Real). Assim, o verdadeiro montante dos recursos fiscais que sustentaram gastos públicos no período anterior a 1994 durante a fase de inflação exacerbada, como proporção do produto nacional, foi muito maior que o revelado pelas contas públicas que produzem a carga tributária formal.
            A segunda medida mostra que não pode ser desprezado o magnífico avanço na contabilidade, gestão e transparência das finanças públicas brasileiras realizado no período posterior a 1994. Inúmeros esqueletos, alguns calcificados nos anos 1970, que eram dívidas públicas não-formais, passaram a ser correta e devidamente contabilizados, e os dispêndios de sua gestão a serem suportados pelos recursos fiscais contabilizados.
            Assim, fica patente que a leitura correta e contextualizada dos resultados de estudos primorosos, como o citado, desqualifica inferências realizadas somente com base na tendência da carga tributária formal. Da mesma maneira, o fato de que no passado existiram recursos fiscais não-contabilizados em maior proporção que os contabilizados, face ao controle da inflação e à revolução na gestão pública, não reduz o problema de que a magnitude da carga tributária atual representa um obstáculo à construção de um padrão consistente de financiamento que gere novo ciclo de desenvolvimento. Mas ficam desqualificados tanto o catastrofismo como o lombrosianismo tributários e, assim, torna-se essencial bani-los do debate pela confusão que impõem à opinião publica, como se coniventes com a perpetuação do 'status quo' de incapacidade do Estado em realizar políticas públicas.
            A questão fiscal atual mostra-se séria e comprometedora das possibilidades do desenvolvimento nacional, mas deve ser debatida nos devidos termos, sem demagogias. Duas questões fundamentais deveriam ser o foco de um debate sério sobre a questão fiscal brasileira, para que a opinião pública não seja bombardeada por meias verdades.
            Do lado da receita, a enorme iniqüidade distributiva entre os diferentes agentes sociais e econômicos, como a não-correção da tabela do imposto de renda que penaliza principalmente a classe média e a quase absoluta não-penalização da riqueza patrimonial acumulada, em especial no campo. Em 2004, a receita do Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR) alcançou apenas R$ 280 milhões cobrados de 7,0 milhões de proprietários rurais em todo Pais, muito inferior por exemplo aos R$ 2,4 bilhões arrecadados no mesmo ano em Imposto sobre Territorial Urbano (IPTU) apenas pela Prefeitura do Município de São Paulo5.
            Do lado da despesa, 'a péssima estrutura de gatos têm sido a tônica dos últimos anos'. Nos anos recentes, a infra-estrutura e os investimentos têm tido alocação de recursos proporcionalmente inferior aos custos previdenciários e despesas correntes. A se manter esse ritmo, 'os gastos correntes continuam em ascensão, assim como a arrecadação para cobri-los. Nenhuma estratégia está sendo efetivamente discutida que reforme a estrutura de gastos e tributos, aumente os investimentos em infra-estrutura e procure melhorar a qualidade dos serviços públicos'6.
            Nesse cenário, não se vislumbra solução consertada visto que todos parecem querer fugir da magnitude do problema, ao buscar apenas minimizar os impactos de eventuais medidas sobre as respectivas estruturas de renda.
            Na agricultura, por exemplo, convive-se ainda com instituições montadas (ou reestruturadas) nos anos 1970. É o caso da pesquisa tecnológica em cujas instituições os investimentos patinam desde os anos 1980, ou da infra-estrutura rodoviária e portuária precárias e da defesa agropecuária insuficientes, o que exige mais gastos públicos correntes para alavancar o desenvolvimento.
            Em plena crise de preços de commodities agropecuárias relevantes, a sobrevalorização do câmbio aprofunda a magnitude do problema. E não há capacidade governamental que possa atuar enxugando a liquidez da moeda norte-americana, ou adquirindo parte da produção, ao menos para evitar quedas insustentáveis dos preços de produtos como a soja e o algodão.
            Deve-se ter claro que essas lavouras podem até ser tecnologicamente competitivas, mas dadas as restrições macroeconômicas o Brasil não é institucionalmente competitivo por restrições fiscais. E não há como elevar a carga tributária formal nem lançar mão do retrocesso do financiamento do gasto público com base em recursos públicos não-contabilizados cobrados de toda a população pela inflação elevada.
            Tudo bem, mas para o debate produzir soluções e não postergações não há como aceitar essa prática contumaz de desvirtuar a verdade dos fatos. 7

___________________________
1 Veja a respeito: VELLOSO, Thiago Para sustentar gasto público, tributos podem chegar a 54% do PIB. (disponível em www.estadao.com.br/ultimas/economia/noticias/2006/abr/03/125.htm, acessado em 04/04/2006).
2 Ver as matérias de GOBETTI, Sérgio. Inferno Tributário: carga de impostos bate recorde e chega a 38,9% do PIB e Inferno Tributário: Brasil já chega perto dos países ricos nos impostos, veiculadas no jornal O Estado de S. Paulo, de 2/04/2006. Caderno de Economia, págs B1 e B3.
3 Essa característica da história da sociedade brasileira está presente na análise da revolução burguesa brasileira da obra de Florestan Fernandes, na visão de sociedade de história lenta de José de Souza Martins e na idéia de mudanças sem ruptura de Ignácio Rangel, cada qual dentro de seu objeto e universo conceitual.
4. Sobre o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek ver o clássico de LESSA, Carlos. Quinze anos de política econômica. Campinas, UNICAMP, 1975 95p.
5 Sobre o ITR, ver o artigo de LEITE, Pedro Dias Presidente critica tratamento a prefeitos. Folha de S.Paulo 28/12/2005 - 09h02 (http://www.folha.uol.com.br). Sobre a estimativa do IPTU, ver informações disponíveis em http://www.prefeitura.sp.gov.br.
6 Sobre a crítica consistente da evolução recente dos gastos públicos, ver o excelente artigo de BAER, Mônica & VALE, Sérgio. Falta foco no debate sobre a política fiscal. Jornal Valor Econômico de 26 de abril de 2006. Pág. A 14.
7 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-36/2006.

Data de Publicação: 09/05/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor