Câmbio ou petróleo: qual preço afeta mais a agropecuária brasileira?

            A crise atual da agricultura vem sendo debitada ao efeito da taxa de câmbio que valorizou a moeda brasileira desde a metade de 2004. Ao olhar a taxa de câmbio mensurada em valores constantes, verifica-se que em maio de 2006 a taxa de câmbio estava no patamar de R$ 2,25/US$; ou seja, situava-se em valores similares aos verificados nos primeiros meses de 2001 e sempre superiores aos de todos os meses de 2000 (figura 1).


Figura 1 - Evolução dos preços internacionais do petróleo tipo brent e da taxa de câmbio, janeiro de 2000 a junho de 2006

Fontes: dados básicos do IPEAdata (www.ipeadata.gov.br) para os preços do petróleo e Banco Central do Brasil (www.bcb.gov.br) para a taxa de câmbio, que (1) reflete valores constantes de dezembro de 2004 deflacionada pelo IPCA do IBGE


            Além disso, nos últimos doze meses commodities agropecuárias, como açúcar, suco de laranja e borracha, tiveram incremento nos preços internacionais em percentuais muito mais expressivos que a queda do câmbio (tabela 1).


Tabela 1 - Variação dos preços das principais commodities agropecuárias nos diferentes mercados futuros, referentes a segunda posição, em Julho de 2006, no acumulado de 2006 e em doze meses

(em porcentagem)

Commodities
Mercado
Julho de 2006
Acumulado 2006 
Acumulado 12 meses
Açúcar
NY
3,49
16,33
68,24
Algodão
NY
-1,73
-0,22
2,32
Café arábica
NY
1,53
-0,54
-4,25
Café robusta
Lo
8,01
10,21
7,06
Cacau
NY
5,55
9,54
12,16
Suco Laranja CC
NY
2,97
29,05
59,76
Soja grão
CHT
0,22
-0,39
-13,77
Milho 
CHT
3,19
20,96
4,59
Trigo
CHT
1,98
21,24
15,84
Borracha SM20
Malasia
-1,89
40,56
61,21
Boi
BM&F
7,64
11,16
8,88
Boi – em reais
BM&F
4,81
6,64
0,46

Fonte: Elaborado pelo IEA a partir dos dados das Bolsas Internacionais e da BM&F


            Além do açúcar, isso ocorre com o álcool, o que produz um dinamismo impar na atividade canavieira. Para esses produtos com preços internacionais crescentes, há uma redução dos impactos da taxa de câmbio nos preços expressos em moeda nacional. Já para mercadorias como algodão e soja, cujos preços externos se mantiveram ou recuaram, há sensível redução dos preços internos.
            Nesse sentido, não há uma crise generalizada da agropecuária brasileira como querem fazer crer algumas análises, mas uma crise profunda em segmentos agropecuários como soja e algodão. Já para outros, como os oriundos da transformação da cana para indústria, a realidade revela dinamismo e expansão.
            Somente um desconhecimento da realidade leva à generalização da ocorrência de crise na agropecuária brasileira, inclusive no seu aspecto regional. Há, por exemplo, um enorme equívoco ao se falar em crise da agropecuária paulista e reverberar, insistentemente, críticas à política cambial. No Estado de São Paulo, a questão é exatamente o oposto da realidade de crise, uma vez que os preços internacionais impulsionam a expansão canavieira.
            Se a taxa de câmbio atual estivesse em patamares muito mais elevados, o ritmo do avanço canavieiro seria muito mais intenso, gerando distorções estruturais ainda muito mais pronunciadas na ocupação do espaço. Do ponto de vista regional, trata-se de uma crise da agropecuária de grãos e fibras dos cerrados brasileiros.
            Ao lado disso, o câmbio não explica toda a crise nem mesmo da agropecuária de grãos e fibras dos cerrados. Há que ser aprofundada a análise de forma a verificar qual o significado de outros preços sobre a renda agropecuária dado o padrão agrário da produção de grãos e fibras.
            As mega-lavouras de grãos e fibras utilizam intensamente a mecanização de todas as operações produtivas do plantio à colheita, ocupando imensas áreas territoriais. De outro lado, são lavouras insumo-intensivas cujas produtividades refletem diretamente a intensidade do uso de corretivos, fertilizantes e defensivos agrícolas. E, como os cerrados estão localizados no centro do território continental brasileiro, há enormes distâncias a serem cobertas até os portos percorridas fundamentalmente com transporte rodoviário.
            Noutras palavras, esse padrão de mega-lavouras de grãos e fibras é extremamente intensivo em derivados de petróleo, como o diesel nas operações da maquinaria no campo e no transporte rodoviário e em alguns fertilizantes e defensivos usados com elevada intensidade. E os preços internacionais do petróleo, após se manterem entre US$ 20,00/barril e US$ 30,00/barril, entre janeiro de 2000 e janeiro de 2004, cresceram de forma intensa até alcançar US$ 70,00/barril em junho de 2006 (figura 1).
            A simples comparação entre os comportamentos dos preços internacionais do petróleo e da taxa de câmbio mostra que o aumento verificado para a commodity foi muito mais expressivo que a valorização da moeda brasileira. Com isso, os impactos nos custos agropecuários face à majoração dos preços do petróleo foram positivos, mesmo amortecidos pela queda na taxa de câmbio. Assim, fica nítido um componente estrutural da atual crise dos grãos e fibras que não será solucionado pela desvalorização cambial. Ao contrário, mantidos os preços do petróleo em patamares elevados, as pressões de custos serão muito mais expressivas.
            Interessante avaliar o comportamento dos preços das commodities agropecuárias no mercado internacional em contraposição ao da taxa de câmbio. No caso da soja, os preços do farelo e do grão seguem tendências similares. É relevante destacar que até os primeiros meses de 2001 havia enorme coincidência entre as trajetórias da taxa de câmbio e dos preços internacionais. Depois, conquanto os preços continuassem em patamares similares até setembro de 2003, ocorreu progressiva desvalorização da moeda brasileira até a metade de 2004, elevando com isso os preços em moeda nacional obtidos nas exportações de soja. Esses preços, inclusive, sobem expressivamente nos últimos meses de 2003 e nos primeiros meses de 2004, em função da conjunção de elevada desvalorização cambial com preços internacionais da soja crescentes (figura 2).


Figura 2 - Evolução dos preços internacionais da soja em grão e do farelo de soja e da taxa de câmbio, janeiro de 2000 a junho de 2006

Fontes: dados básicos da The Chicago Board of Trade (CBOT) para os preços da soja (www.cbot.com) similar à figura 1 para a taxa de câmbio


            No segundo semestre de 2004, os preços da soja reduzem-se de forma abrupta mas mantêm-se pouco acima dos patamares históricos até junho de 2006. Entretanto, a taxa de câmbio recua de forma persistente desde então, produzindo padrões de valorização da moeda brasileira cujos efeitos consubstanciam queda dos preços obtidos pelos exportadores nacionais (figura 2).
            Em linhas gerais, há similaridade tanto dos patamares da taxa de câmbio quanto dos preços da soja (farelo e grão), quando se compara o início da série (janeiro a dezembro de 2000) com o seu final (setembro de 2005 a junho de 2006). Como as exportações brasileiras avançam exatamente do início de 2001 em diante, fica nítido que o boom exportador da soja se ancorou na desvalorização cambial.
            Contudo, a valorização da moeda nacional não explica toda a crise dos produtos do complexo soja. Trata-se de uma lavoura típica das áreas de cerrado, conquanto tenham expressão no contexto nacional as produções gaúcha e paranaense (no boom de 2004, até mesmo a agropecuária paulista produziu muita soja). Por ser mecanizada do plantio à colheita, utiliza intensamente insumos da indústria petroquímica e, no transporte das regiões mais longínquas, até os portos de embarque para o exterior prevalece o modal rodoviário. A paridade entre os preços do petróleo e da soja no mercado internacional mostra que, de janeiro de 2000 a setembro de 2003, cada tonelada de soja comprava de 6 a 8 barris de petróleo, variando em torno do mesmo patamar (figura 3).


Figura 3 - Evolução da paridade entre os preços internacionais da soja e do petróleo, janeiro de 2000 a junho de 2006


            Exatamente quando os preços internacionais da soja avançam entre setembro de 2003 e maio de 2004, o indicador de paridade dá um salto. Uma tonelada de soja passa a comprar mais de 10 barris de petróleo, revelando manutenção dos preços dessa fonte de energia fóssil. Desde então, queda abrupta dos preços internacionais da soja faz a paridade recuar da mesma forma até o segundo semestre de 2004. Mas esse mergulho aprofunda-se de forma decisiva pelo aumento dos preços do petróleo que continuam a arrastar para baixo a paridade. Tanto que, em junho de 2006, uma tonelada de soja comprava 3 barris de petróleo, ou seja, menos de um terço da época de altos preços internacionais dessa leguminosa e também menos da metade da média verificada no período até setembro de 2003 (Figura 3).
            Fica nítido que a elevação dos preços do petróleo impacta de maneira decisiva os custos de produção e transporte da soja, gerando um componente estrutural da crise dessa lavoura, uma vez que, ao persistir nos atuais níveis, compromete estruturalmente a competitividade do padrão de cultivo de soja nos cerrados.
            Ao tomar outras duas commodities relevantes (o açúcar e o algodão em pluma), essa perspectiva fica mais nítida. Os preços do açúcar, após crescimento de janeiro a setembro de 2000, recuam de forma persistente até alcançar o patamar inicial em maio de 2003. Dessa data até março de 2004, apresentam novo movimento de aumento e diminuição. De abril de 2004 a junho de 2006, entretanto, ocorre um significativo movimento de alta nos preços internacionais do açúcar que chegaram a triplicar nesse espaço de tempo. É relevante destacar, no caso do açúcar, que, enquanto os preços internacionais estavam em patamares menores, a desvalorização cambial garantiu preços expressos em moeda brasileira mais remuneradores para os exportadores nacionais. Exatamente quando ocorre o período de valorização, os preços internacionais do açúcar elevam-se de forma tão persistente que mais que compensam as perdas com o câmbio (figura 4).


Figura 4 - Evolução dos preços internacionais do açúcar e do algodão em pluma e da taxa de câmbio, janeiro de 2000 a junho de 2006

Fontes: dados básicos da New York Board of Trade (NYBOT) para os preços do açúcar e do algodão (www.nybot.com) similar à figura 1 para a taxa de câmbio.


            Dessa maneira, para a principal lavoura e o mais relevante produto para a renda e o emprego na agropecuária paulista, o câmbio não consiste num problema.
            No caso do algodão em pluma, a realidade se mostra oposta, muito similar à verificada com a soja. Os preços internacionais dessa fibra têxtil variaram em torno do mesmo patamar em todo período, inclusive concatenados com a taxa de câmbio. Recuaram de janeiro de 2001 a outubro de 2002 quando a taxa de câmbio se elevou. Houve ligeira convergência de alta das duas taxas de novembro de 2002 a maio de 2003 e, quando o câmbio se estabilizou até maio de 2004, os preços internacionais do algodão em pluma apresentaram acréscimo. Quando se verifica a valorização cambial até junho de 2006, os preços das pluma recuaram para seus patamares históricos, mantendo consistente padrão de estabilidade (figura 4).
            Mais uma vez, o câmbio sustentou preços remuneradores aos exportadores brasileiros de algodão no período de janeiro de 2000 a maio de 2004. Entretanto, ao contrário do açúcar, os preços internacionais da pluma não cresceram de forma a compensar a valorização cambial.
            A verificação da paridade dos preços internacionais do açúcar e da pluma de algodão com os do petróleo revela que os comportamentos são muito distintos em termos de trajetória; em especial no período posterior a maio de 2004, exatamente quando ocorre a valorização da moeda brasileira. A paridade dos preços do algodão em pluma, mantidos no mesmo nível, despencou em relação aos preços do petróleo que se elevaram de forma significativa no período. Já a recente recuperação dos preços internacionais do açúcar, que mostraram acréscimo vertiginoso, elevou os indicadores de paridade. Com isso, as lavouras canavieiras não sofreram diretamente os impactos dos maiores preços dos combustíveis na rentabilidade econômica, obtendo incrementos nas receitas superiores aos verificados nos custos operacionais de produção e transporte (figura 5).


Figura 5 - Evolução da paridade entre os preços internacionais das commodities agropecuárias (açúcar e algodão em pluma) e do petróleo, janeiro de 2000 a junho de 2006


            Em síntese, não faz sentido carregar toda a carga da crise na questão do câmbio, conquanto os efeitos da recente valorização cambial tenham implicado na obtenção de preços menores em moeda brasileira. Nem mesmo isso pode ser configurado como um genérico na argumentação quanto aos impactos das políticas macroeconômicas sobre a agropecuária. Em São Paulo, por exemplo, onde já se convive com a euforia canavieira, a situação seria muito mais contundente numa realidade cambial mais atrativa.
            A questão crucial, nem sempre lembrada pelos analistas da 'âncora cambial', está em que após a adoção da política de câmbio flutuante de janeiro de 1999 em diante, até maio de 2004, foi exatamente a desvalorização cambial que permitiu a obtenção de preços remuneradores para as commodities agropecuárias, tornando atraentes investimentos e expansão de plantios, mesmo quando os preços internacionais não eram tão atraentes. Em certo momento, quando os preços internacionais das commodities agropecuárias aumentaram, a partir do segundo semestre de 2002, houve a convergência do clima de euforia, no sentido de que em poucos anos a agropecuária brasileira seria incontestável líder mundial na produção de grãos e fibras.
            A euforia foi tamanha que poucos se lembraram das amarras da taxa de juros elevadas, gerando significativo crescimento dos saldos da balança comercial. O boom das lavouras de grãos e fibras deu-se com reduzida participação do crédito rural oficial, lastreando-se em financiamentos privados ancorados em diversos mecanismos de contratos, em especial as emissões de Cédulas do Produto Rural (CPRs).
            O dinheiro caro ficou para segundo plano numa realidade cambial que exacerbava a rentabilidade, gerando decisões de investimentos estimuladas pelos incentivos fiscais ('guerra fiscal escancarada') e sustentadas pelas facilidades criadas para a aquisição de máquinas e implementos propiciada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). As sucessivas securitizações das dívidas dos agropecuaristas, realizadas desde a metade dos anos 1990 com a absorção de parte dos ônus pelo Tesouro Nacional, tornaram ampla massa de agropecuaristas adimplentes e aptos a apostar no novo ciclo de expansão das lavouras de grãos e fibras.
            Ainda que a questão do câmbio não deva ser abandonada do debate, não faz sentido atribuir-lhe a condição de único vilão da história. Há um elemento estrutural mais contundente representado pela elevação dos preços do petróleo. Trata-se de situação em que as políticas nacionais pouco podem fazer e que não parece contornável no curto e médios prazos. Isto coloca no centro da crise uma questão de custos com efeitos tecnológicos e locacionais relevantes, uma vez que altera a competitividade relativa entre sistemas de produção em favor dos poupadores de insumos e menos intensivos em mecanização, além de tornar atrativas plantações mais próximas dos portos e as alternativas ferroviárias e rodoviárias dentre os modais de transporte.
            Esse ajuste exige investimentos e tempo para que se concretize a contento. E, ao contrário da questão dos preços, as pressões de custos em função dos impactos dos aumentos dos preços do petróleo são, sim, generalizadas em todas as commodities produzidas pelas lavouras mecanizadas. Mais uma vez, açúcar e álcool têm vantagens locacionais relevantes em função da distância até os portos, dada a concentração nas terras paulistas.
            O foco da crise, no aspecto estrutural, não está nas receitas reduzidas pela valorização cambial, mas nos custos de produção pela alta nos insumos derivados de petróleo, ainda que amortecida exatamente pela taxa de câmbio, sem o que adquiriria contornos mais dramáticos. Em termos de política macroeconômica, o problema deve ser solucionado pelo lado da taxa de juros, que inclusive terá algum efeito sobre a taxa de câmbio ao tornar menos atrativas entradas de capital especulativo.
            Os modernos mecanismos de venda antecipada de safra e de emissão de derivativos agropecuários representados pelos títulos financeiros poderão alavancar dinheiro mais barato de capital para custeio numa situação de taxas de juros muito inferiores às atuais. Mudanças no sistema tributário, como a adoção do imposto indireto sobre o valor adicionado com base no princípio do destino e não da origem como hoje, devem desonerar as exportações. Ao lado disso, repensar o padrão de cultivo insumo-intensivo, buscando outras opções tecnológicas, significa uma necessidade inexorável para a competitividade da agricultura brasileira.1

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1 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-77/2006.

Data de Publicação: 08/08/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor