Crise atual da agropecuária brasileira: perfil, perspectivas e dilemas

            A crise atual vivida pela agricultura brasileira tem produzido enorme conjunto de questões que nem sempre encontram respostas adequadas na maioria das manifestações. É que muitas delas foram produzidas por interlocutores com interesse direto no assunto, o que impede uma leitura imparcial da problemática envolvida. Daí ser fundamental destacar os principais elementos dessa realidade, de maneira a contribuir para a sua compreensão.
            Nesse sentido, a articulação das mais relevantes questões postas no debate ajuda a construir expectativas consistentes de futuro

Perspectivas, a partir de um momento crítico

            Não se tem uma crise da agropecuária, mas a crise de algumas commodities relevantes como soja, milho, algodão, arroz e boi. A realidade da cana, por exemplo, é muito diferente pois os preços internacionais do açúcar mais que dobraram e compensaram a queda do dólar. Outros produtos, como sucos cítricos, produtos florestais e café, também apresentam preços remuneradores. Como existe uma grande especialização regional da agropecuária brasileira, também do ponto de vista espacial a crise mostra-se localizada nas regiões produtoras das grandes commodities de grãos e fibras, da pecuária de corte e do arroz.
            Para o açúcar e o álcool, enquanto agente produtivo existe apenas a agroindústria, que planta, colhe e processa cana, praticamente eliminando a agropecuária numa radicalização da integração vertical para trás. Assim, as perspectivas futuras são muito boas face às tendências do mercado internacional. Isto ocorre com qualquer câmbio pois, se houver desvalorização da moeda nacional, as vantagens competitivas dessa cadeia de produção serão exacerbadas. Já para grãos e fibras, como soja, algodão e milho, as perspectivas futuras são muito mais complicadas.

Receitas líquidas, positivas no caso de grãos e fibras

            As commodities por pressuposto consistem em produtos de baixo valor unitário, logo ganha-se pouco em grandes volumes. Por outro lado, parte dos ganhos de produtividade converteu-se em queda de preços, pois um dos objetivos do progresso técnico é exatamente produzir mais para permitir preços menores.
            Mas há que se discutir o padrão da base técnica desses produtos que se deu fundamentalmente pela expansão horizontal de lavouras insumo-intensivas com elevado nível de mecanização. Esse padrão, que nos últimos anos usa intensamente derivados de petróleo, não apenas o diesel mas também insumos derivados da petroquímica, sofreu com o encarecimento desses insumos.
            Os preços do petróleo mais que dobraram no mercado internacional, avançando mais que a queda do dólar, o que encareceu custos. Assim, as operações mecânicas ficaram mais onerosas, bem como alguns insumos petroquímicos e o transporte até o porto. Por serem tomadores de preços, os produtores dessas commodities viram suas receitas líquidas minguarem nos últimos anos. E teria sido muito mais grave se não houvessem ganhos de produtividade.

Valorização cambial, apenas parte do problema

            O padrão insumo-intensivo com elevada mecanização das lavouras de commodities é que está em xeque. O boom do período 2000-2004 deu-se com o câmbio em alta, para até acima de R$3,00 por dólar, e com o petróleo no patamar abaixo de US$ 30,00 por barril. Atualmente, o câmbio está em R$ 2,20 por dólar e o petróleo acima de US$ 60,00 por barril. O câmbio valorizou-se em 36,4% e o preço do petróleo mais que dobrou no mercado internacional.
            Não há como desvalorizar a moeda brasileira sem que haja impactos nos custos da mecanização, dos insumos da petroquímica e dos fretes rodoviários. E se tratam de atividades tomadoras de preços. A questão estrutural mostra-se muito mais complexa que a captada à primeira vista numa visão superficial. Para esse padrão de lavouras não basta apenas desvalorizar a moeda brasileira. A conjuntura favorável do período de apogeu correspondente dificilmente se materializará novamente. E não há aumento de produtividade que dê conta disso.

Ganhos de produtividade da terra e competitividade

            Ganhos de produtividade são relevantes mas não explicam os movimentos de recuo e expansão das lavouras. Ao capitalista não interessa a renda bruta por unidade de área mas a renda bruta total. O capitalista, detentor do capital, reproduz seu capital elevando a massa de lucros e não o lucro per capita.
            Em São Paulo, a média de produtividade da terra (quilos por hectare) para a cana aumentou 42% no triênio 2002-2004, em relação ao triênio 1969-1971, menos que a do feijão (+ 212%), do algodão (+125%) e das pastagens (+187%). Já a área plantada da cana aumentou em 2,5 milhões de hectares, enquanto a de feijão perdeu 47 mil hectares, a do algodão recuou em 512,5 mil hectares e a das pastagens, em 1,7 milhão de hectares.
            Numa economia de mercado para atividades que respondem a preços, são o tamanho e o perfil da demanda que determinam o que e quanto produzir, e não o contrário. É preciso ter claro que, na agricultura inserida na lógica financeira, não se produz para vender, mas vende-se para depois produzir, numa inversão radical da lógica do passado.

Mecanização, produtividade da terra e expansão das commodities

            Foi a escala superior via mecanização que levou a rendas brutas totais muito maiores, ao permitir multiplicar horizontalmente via escala o teto da produtividade, aproveitando as possibilidades abertas pela demanda internacional tornada favorável pela conversão cambial. Até os anos 1980, as operações mecanizadas não abrangiam as operações de colheita das principais lavouras e, atualmente, abrangem todas as operações de produção. Isso foi determinante para a expansão recente da lavoura brasileira.
            Falar em bóia-fria ficou fora de moda e a escassez sazonal de mão-de-obra para as grandes lavouras deixou de ser problema, quando eram o foco do debate no início dos anos 1980. Um dos grandes perdedores desse processo foram os trabalhadores sazonais das colheitas que perderam e continuam a perder oportunidades de trabalho. Da luta contra a exploração passaram a lutar para não deixarem de ser explorados. Essa é outra face da realidade das lavouras intensamente mecanizadas.

Como fica a discussão sobre custos e produtividade?

            Tome-se o caso do feijão no Sudoeste Paulista, uma lavoura alimentar que se modernizou (tabela 1).

Tabela 1 - Estimativas da rentabilidade da lavoura de feijão, Estado de São Paulo, segundo diversos sistemas de cultivo, agosto de 2005
 

Variáveis
Sistemas Sequeiros
Sistemas Irrigados
600 kg/ha
1.500 kg/ha
3.000 kg/ha
4.200 kg/ha
Custo Operacional Efetivo (COE) (R$/ha)
555,85
1.070,96
2.400,30
2.512,30
Depreciação e Encargos
18,45
113,77
364,20
406,30
Juros
4,32
74,97
412,55
420,81
Custo Operacional Total (COT) (R$/ha)
579,82
1.269,33
2.400,30
3.346,57
Custo Unitário (R$ sc 60 kg)
57,98
50,77
48,01
47,81
Área media(ha)
4,25
38,75
70,00
90,00
Preços de venda ((R$ sc 60 kg)
75,00
78,00
82,00
82,00
Receita Líquida (há)
170,18
680,67
1.699,70
2.393,43
Receita Líquida Total (R$/área media)
723,26
26.375,83
118.979,00
215.408,68

Fonte: GONÇALVES et al (2005)1

            Os custos operacionais totais aumentam com as maiores produtividades (de R$ 579,82 por hectare para R$ 3.346,57/ha), mas os custos unitários são decrescentes em função dos ganhos de escala (R$ 57,98 o saco para R$ 47,81/sc). Com a intensificação do progresso técnico, a renda líquida aumenta substancialmente por unidade de área (R$ 170,18/ha em 600 kg/ha para R$ 2.393,43/ha em 4.200 kg/ha). Mas no custo por unidade de produto, quanto mais tecnificada e com maior escala for a lavoura, mais se produz feijão barato. E também de melhor qualidade pois os produtores recebem preços maiores por saca.
            Aí cria-se um dilema para quem for decidir sobre políticas públicas. Em São Paulo, por exemplo, 94% da população moram nas cidades, a maior parcela nas grandes cidades, e esse contingente humano quer alimento barato. Pois bem, quem produz esse alimento barato são as grandes lavouras tecnificadas. Como a população urbana é a maioria, que sentido faz para ela incentivar e manter pequenas lavouras de feijão produzindo em níveis próximos da subsistência?
            Para a imensa massa de trabalhadores urbanos de baixos salários, não faz qualquer sentido. O desenvolvimento da agricultura fez com que o acesso ao alimento não seja um problema de oferta, mas de demanda, pelo lado da renda, principalmente em função das taxas de desemprego urbano. Não há falta de comida, mas falta de salário para comprar comida.

Quem não atingiu patamar mínimo de tecnologia deixa a atividade

            Não há inovação tecnológica no campo biológico que explique esse processo dos anos 1990 em diante. Como já foi dito, o grande motor do avanço da agricultura tem sido os aumentos de escala, via mecanização, que nos últimos anos passou a ser total para as principais commodities, indo do plantio à colheita. Tratores mais potentes (dado o incremento da potência média dos tratores) e colhedoras mais modernas superaram definitivamente o limite da escassez sazonal de mão-de-obra, impulsionando as lavouras de escala.
            Veja o algodão, que saiu de São Paulo e Paraná e foi para Mato Grosso e Bahia. Não foi apenas uma mudança geográfica mas uma alteração estrutural profunda, ao passar de uma cotonicultura de pequenas lavouras e com colheita manual para mega-algodoais com colheita mecânica. Em São Paulo e Paraná, eram 61 mil cotonicultores no final dos anos 1980 e, atualmente, são pouco mais de mil na soma de Mato Grosso e Bahia.
            Cerca de 250 mil trabalhadores deixaram de ser necessários. E, se foram produzidas 864 mil toneladas de pluma na safra 1988/89, em 2004/05 a produção chegou a 1,3 milhão de toneladas de algodão em pluma.

Como então se verificam produtividades crescentes?

            A eliminação das lavouras de baixa produtividade empurrou a média para cima. Não houve novos resultados de pesquisa biológica que produzissem o salto verificado na produtividade da terra. Esse é um engodo presente na discussão do avanço das commodities nos Cerrados. Não se faz resultados de pesquisa consistentes com a mudança da realidade em períodos menores que uma década. Assim, foi a generalização do uso da tecnologia mais avançada já conhecida que explica esse sucesso.
            São os ganhos de escala pela mecanização e não resultados de pesquisa biológica recente. Esses resultados estão disponíveis desde o final dos anos 1960. A soja tropical não nasceu ontem. São conquistas estratégicas e relevantes da pesquisa pública brasileira mas que não são o principal fator explicativo do avanço atual das lavouras de commodities.
            Foi o processo de expansão via incremento de escala que acabou levando inúmeros lavradores a abandonarem a atividade porque não tiveram condições de investimento para acompanharem o processo. Assim, as médias de produtividade não crescem em razão das inovações biológicas como querem muitos, mas dos investimentos em máquinas, eliminando os menos capitalizados.

O exemplo da lavoura de algodão

            São os mega-algodoais mecanizados do plantio à colheita, usando variedades de alta resposta a insumos e determinando um padrão técnico, que inviabilizaram os pequenos empreendimentos. Mas os tetos de produtividade de algodão se mantêm desde os anos 1980, o que quer dizer que não são os resultados da pesquisa biológica que explicam os aumentos da produtividade média. Os resultados de estudo sobre algodão para São Paulo mostram bem isso, como se vê nas tabelas 2 e 3.

Tabela 2 - Evolução da produtividade do algodão em caroço, Estado de São Paulo, segundo os padrões tecnológicos, safras 1983/1984 a 2003/2004, em kg/ha
 

Estratos
1983/1984
1990/1991
1993/1994
2000/2001
2003/2004
Menos 1500
1.374
1.423
1.445
1.458
1.468
1500-2000
1.659
1.725
1.926
1.913
1.956
2000-2500
2.136
2.345
2.426
2.328
2.456
2500-3000
2.932
2.725
2.856
2.729
2.926
3000-3500
3.354
3.125
3.425
3.326
3.268
mais 3500
3.879
3.928
3.889
3.942
3.782
Estado
1.784
1.506
1.707
2.255
2.477

Fonte: GONÇALVES (2006)2

Tabela 3 - Evolução dos percentuais da área plantada com algodão, Estado de São Paulo, segundo os estratos de produtividade, safras 1983/1984 a 2003/2004, em %
 

Estratos
1983/1984
1990/1991
1993/1994
2000/2001
2003/2004
Menos 1500
45,72
87,87
61,82
23,41
8,49
1500-2000
29,60
7,16
29,53
26,56
29,60
2000-2500
11,44
2,52
4,06
18,27
26,34
2500-3000
7,85
1,61
2,48
16,96
19,31
3000-3500
3,57
0,45
1,42
10,71
10,45
mais 3500
1,82
0,39
0,68
4,09
5,83
Estado
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00

Fonte: GONÇALVES (2006)2

            A produtividade média move-se pela exclusão dos estratos de menor produtividade. Por certo, houve resultados de pesquisa biológica que produziram a manutenção dos patamares de produtividade, o que se mostra crucial, em função da obsolescência que caracteriza os matérias genéticos. Entretanto, as variedades foram mudadas de IAC-17 para IAC 20, depois para IAC 22, esta substituída pela Delta Pine Acala 90 e, por último, pela Delta Opal, mas os tetos de produtividade são similares.
            E uma leitura das características dessas variedades mostra que substituímos materiais genéticos voltados pela colheita manual por outros específicos para colheita mecânica. Como aprofundou-se o uso de materiais com alta resposta a insumos, os custos de produção se elevaram. Assim, a mecanização e lavouras insumo-intensivas impulsionaram a escala da cotonicultura, produzindo uma profunda mudança estrutural, ao eliminar as lavouras de menor escala.
            Vejam que nem sempre isso é ruim. Como no caso do feijão, isso pode ser interessante para o trabalhador urbano que constitui a maioria da população e quer vestuário mais barato. Mas a pressão social no campo se eleva de forma explosiva. Mais um dilema para os formuladores de políticas públicas.3

_________________________
1 Ver GONÇALVES, José S. & SOUZA, Sueli Alves Moreira Preços estimuladores formam expectativas de maior área plantada na safra de feijão das águas 2005/06 Revista Informações Econômicas 35 (11): 49-56, 2005.
2 Ver GONÇALVES, José S.; BARBOSA, Marisa Z. & RAMOS, Soraia de Abertura comercial, crise algodoeira e exclusão social no Brasil Meridional. São Paulo, Convênio ActionAid/FUNDEPAG/IEA. Fevereiro de 2006 (Relatório Final).
3 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-79/2006.

Data de Publicação: 21/09/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor