Agenda para um PAC da agricultura: reforma tributária, mas qual?

            As críticas de vários segmentos da agricultura brasileira ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal levaram ao lançamento da idéia de um PAC da agricultura pelo professor Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e presidente do Conselho do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
            O professor Roberto Rodrigues lançou algumas idéias, mas, como que revivendo a condição de seu aluno 'impertinente', achei por bem elencar outros elementos para o debate, visando contribuir para a discussão e adoção de um conjunto de medidas no sentido de estruturar os caminhos para o avanço da agricultura brasileira. Em função disso, são apresentados pontos estruturais que não foram considerados na primeira manifestação do professor sobre o assunto, de maneira a ampliar o debate.
            A primeira questão a ser tratada está afeta à reforma tributária. Entendemos que a questão tributária, para ser efetiva e aderente à realidade, se mostra mais complexa do que o 'discurso desoneracionista' com que tem sido tratada pelas lideranças setoriais. Vejam-se dois tópicos essenciais da agenda de um PAC para a agricultura:
a) Para um setor irradiado por uma economia continental, o fundamental de uma reforma tributária consiste em alterar a lógica atual dos tributos que incidem sobre o valor adicionado com base no princípio da origem, como o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
            Não apenas porque esse mecanismo representa a base da 'guerra fiscal' que tem provocado inúmeras distorções alocativas na agropecuária, e mesmo na agricultura brasileira, atraindo investimentos que só se sustentam com base nessas benesses fiscais. Aqui, duas posturas de pura hipocrisia vêm sendo veiculadas: 1) de um lado, encontram-se empresários rurais cujos empreendimentos só foram instalados em função das renúncias fiscais, por serem beneficiários da 'guerra fiscal', e, ainda assim, verberam contra 'a insuportável carga tributária'; e 2) de outro lado, figuram governadores cujas unidades da federação distribuíram benesses fiscais de forma ampla e irrestrita, enfrentando déficits orçamentários exatamente porque 'não cobram os impostos devidos', e que ainda criticam, por vezes, não apenas 'o pesado fardo tributário' como também, contraditoriamente, exigem alguma compensação pelas desonerações fiscais de tributos federais realizadas no PAC, uma vez que isso impactaria negativamente as transferências federais paras as respectivas unidades da federação.
            Essa postura não contribui para o equacionamento da questão tributária muito menos dos entraves ao desenvolvimento nacional. Para isso, a reforma tributária deveria ter como meta, num primeiro momento, a adoção do princípio do destino nos impostos sobre o valor adicionado e, no momento seguinte, a consolidação de todos os tributos sobre o valor adicionado, com arrecadação unificada e apropriação compartilhada entre entes federativos.
            Essa construção mostra-se muito mais relevante que os investimentos em infra-estrutura para a completa integração da agricultura nacional, na medida em que incorpora vastos territórios em função do movimento de crescimento setorial, e não com base em subterfúgios que conferem 'falsas competitividades' e promovem distorções alocativas.
            Senão, como na crise de grãos e fibras dos cerrados, tem-se o absurdo de se exigirem recursos públicos para equacionar grave crise de endividamento exatamente de segmentos produtivos que mais foram beneficiados com renúncias fiscais. É fundamental não tergiversar sobre isso, mas aprofundar na discussão da totalidade do problema para que a solução adequada para essa crise seja encontrada. E isso está fora do PAC.
            A adoção de mecanismos de tributação do valor adicionado pelo princípio do destino corrigiria também um elemento fundamental da crise agropecuária que está sendo desconsiderado na discussão da sua solução: os efeitos perversos da denominada 'Lei Kandir' que incide nas exportações da agricultura. Esse instrumento, ao desonerar os produtos básicos e gravar os manufaturados, tem alavancado as exportações brasileiras de 'commodities agropecuárias' sem processamento mínimo em território nacional.
            No caso da soja, existem até mesmo exportações de grãos para a Argentina, isentas de tributos como o ICMS, que são processadas e reexportadas. Isto implica no crescimento da agropecuária e no menor ritmo de avanço da agroindústria processadora dentro do País, num processo que trava mais agregação de valor e geração de empregos na agricultura brasileira.
            Para o Estado de São Paulo, não existe apenas o problema de que o governo federal não tem cumprido o ressarcimento da perda de receitas tributárias decorrentes da 'Lei Kandir', mas, principalmente, de que faz discriminação contra a agricultura de uma unidade da federação agroindustrial exportadora. Dependente de matéria-prima de outras unidades da federação, o Estado assiste esses produtos passarem pelo seu território rumo diretamente aos países consumidores ou para as agroindústrias argentinas onde são processadas e reexportadas. Em suma, a Lei Kandir discrimina a agroindústria processadora paulista, encarecendo a matéria-prima e estimulando a exportação de produtos básicos. E isso está fora do PAC.
b) Os diversos analistas da agropecuária brasileira têm, na questão fiscal, colocado em plano secundário o fato de que o imposto sobre o patrimônio fundiário consiste num elemento fundamental para a regulação da ocupação do espaço territorial brasileiro e, por isso mesmo, consiste num fator de ordenamento do investimento.
            O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) tem sido tratado como um tributo insignificante, do ponto de vista da arrecadação. Os mais de sete milhões de imóveis rurais brasileiros pagaram de ITR em 2006 dez vezes menos que a arrecadação de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Uma casa localizada na periferia paulistana pagou mais imposto sobre a propriedade do que um imóvel rural de 100 hectares.
            Esse fato mostra-se tão absurdo que por vezes se discute até mesmo a municipalização do ITR, o que levaria a outras distorções. A maioria dos municípios também não cobra IPTU de maneira adequada, tendo contas públicas deficitárias numa realidade de 'falta de vontade de tributar'. Com certeza, não seria a transferência de um tributo, que não é cobrado de forma adequada, a resolver o problema das finanças municipais, onde também persistirá sem cobrança. Nesse caso, sugere-se que, por princípio constitucional, a arrecadação municipal do IPTU seja, no mínimo, igual à obtida com o ITR.
            E o ITR deveria ser tratado como um tributo ordenador da ocupação do espaço territorial, tanto entre as diversas regiões brasileiras quanto dentro das propriedades rurais. Nesse sentido, seria um tributo com objetivos não arrecadatórios, ou seja, com soma zero para efeito de receitas públicas, que continuaria na esfera federal.
            O novo ITR teria valores mais altos que os atuais e seria livre de quaisquer custos adicionais com a total desvinculação legal da cobrança de contribuições confederativas junto com (ou associadas ao) ITR, o que na verdade representa o grosso do pagamento realizado pelos proprietários rurais. Mas isso não implicaria aumento da carga tributária?
            Não, porque estaria associado a outro mecanismo, qual seja, o de estímulo à preservação ambiental. Para cada hectare mantido na forma de reserva legal, áreas de preservação permanente (APPs) ou reserva particular de proteção natural (RPPN), os proprietários seriam desonerados com o equivalente ao ITR devido por dois hectares de área cultivada. Uma conta simples mostra que a manutenção de um terço de vegetação nativa em uma propriedade rural isentaria o respectivo proprietário do pagamento do ITR, ainda que o imposto cultive dois terços da propriedade.
            Para estimular o uso econômico das reservas legais, poderia ser permitida a exploração econômica, sob dadas condições técnicas, de espécies oriundas do Brasil como pupunha, seringueira, guaraná e palmito, entre outras, além da apicultura e do turismo rural. Isto se daria por meio da criação de mecanismos econômicos de estímulo à preservação ambiental em substituição aos ineficientes e arcaicos sistemas normativos de caráter punitivo e restritivo nos quais atualmente se baseiam as normas ambientais brasileiras.
            Trata-se de instrumento de política ambiental, por meio do qual o ITR funcionaria como um ressarcimento feito pela sociedade ao proprietário rural que preserve o meio ambiente. Isto poderia ensejar até mesmo o surgimento e a execução de políticas públicas para construir 'propriedades rurais familiares de preservação ambiental'.
            Para o perfil de propriedades que preservassem 90% da respectiva área no cumprimento de políticas ambientais, por exemplo, poderia ser dada não apenas isenção total dos 10% ocupados com base na progressividade de rebate do tributo de mais 1% para cada 1% adicionais preservados após o mínimo de 80%. Mas esses proprietários receberiam dos cofres públicos um pagamento correspondente a um terço do ITR que pagariam se cultivassem toda a área da propriedade.
            Além disso, poderiam 'arrendar reservas ambientais', segundo condições estabelecidas em lei, para o cumprimento do mínimo a ser preservado de empreendimentos agropecuários que exijam a ocupação de mais que dois terços da área das respectivas propriedades rurais. Aliás, essas 'propriedades rurais familiares de preservação ambiental' poderiam ser mutiplicadas em espaços de maiores restrições de uso agropecuário, segundo a capacidade agronômica de uso do solo.
            Estaria assim a política fundiária convergindo com políticas ambientais consistentes com os objetivos e os valores de uma sociedade urbanizada. Ao mesmo tempo, os 'assentados ambientais' não teriam de enfrentar a crueza e a realidade desleal de competição a mercado com os empreendimentos agropecuários modernos. Ao contrário, obteriam amplo reconhecimento social.
Outro resultado seria uma política de ocupação do solo convergente com políticas ambientais que são grande anseio social. Para isso, há que se avançar em reformas institucionais que alterem a regulação do uso do solo. Dentre elas, a legislação ambiental deveria deixar de apresentar um recorte exclusivamente normativo de caráter punitivo. E isso está fora do PAC.1

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1 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-08/2007.

Data de Publicação: 31/01/2007

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor