Os Números da Crise dos Alimentos

            A alimentação é um direito humano, mas um enorme contingente da população mundial vive em situação de insegurança alimentar e periodicamente o fantasma da fome volta a afligir o mundo, colocando ainda mais pessoas nessas condições. É o que se observa na atualidade quando 37 países enfrentam crises de abastecimento causadas por secas, inundações, mudança climática, preço elevado do petróleo e demanda crescente para biocombustíveis. São 21 países da África, 10 da Ásia, 5 da América Latina1 e 1 da Europa2. Esses eventos provocaram escalada dos preços dos alimentos básicos, afetando adversamente a segurança alimentar.

            Tendo o ano de 2000 por base do índice, os dados3 mostram que a escalada dos preços dos cereais e óleos comestíveis começou em 2002, com crescimento de 11% e 26%, respectivamente. Em 2003 o índice médio de preços dos alimentos atingiu 110 e daí em diante não parou de crescer, puxados inicialmente por cereais e óleos, mas a partir de 2004, também pelos produtos lácteos, resultando em aumento médio de 69% até 2007. Carnes e açúcar foram os que menos contribuíram para a inflação dos alimentos, com aumento de 21% e 23% entre 2000 e 2007, respectivamente. Nesses sete anos os óleos tiveram aumento de preços da ordem de 142%, os lácteos acumularam aumento de 133% e os cereais, de 98% (Tabela 1).

            Em 2008 os cereais e óleos lideraram a elevação dos preços, com altas de 27% e 26%, respectivamente, entre dezembro de 2007 e março de 2008. O açúcar vem logo em seguida com 23% e as carnes, com 8% de aumento. Somente o grupo dos lácteos teve redução de preços (-6%), resultando em incremento médio de 18% nos preços dos alimentos nos 3 primeiros meses de 2008.

            No Brasil os preços dos alimentos tiveram evolução mais moderada. A partir dos índices de alimentos e bebidas que compõem o IPCA e o INPC, entre janeiro de 2000 e maio de 2008, o aumento dos preços esteve pouco acima de 80%, com certa desvantagem para os trabalhadores de renda mais baixa, pois o INPC cresceu mais4. Observe-se que tendo por base janeiro de 2000, até meados de 2002 os índices oscilaram entre 100 e 120, com tendência de alta. No começo de janeiro de 2003 houve uma mudança de patamar para o intervalo entre 140 e 160 onde permaneceu até maio de 2007. Daí em diante ambos mostraram nítida tendência de crescimento, ultrapassando 180 nos últimos meses da série. Apesar da aceleração dos preços no período recente, o ritmo foi menos acentuado que no resto do mundo: se nos 3 primeiros meses de 2008 a média mundial alcançou 18%, a brasileira ficou entre 6% e 7%, dependendo do índice empregado (Figura 1).

Tabela 1 - Índice de Preços dos Alimentos da FAO, 2000 a 2008

Ano
Alimentos1
Carnes
Lácteos
Cereais
Óleos2
Açúcar
2000
100
100
100
100
100
100
2001
102
100
110
102
100
106
2002
101
96
81
111
126
84
2003
110
105
99
116
146
87
2004
123
118
123
128
163
88
2005
126
121
137
122
151
121
2006
137
115
130
143
163
181
2007
169
121
233
198
242
123
Mar./07
151
121
175
174
192
128
Abr./07
153
119
201
170
208
119
Maio/07
155
119
209
172
224
115
Jun./07
162
120
238
183
236
113
Jul./07
168
120
261
184
243
125
Ago./07
174
123
271
197
251
120
Set./07
184
124
274
224
264
119
Out./07
188
122
280
231
281
122
Nov./07
195
126
285
233
307
124
Dez./07
201
123
278
257
314
130
Jan./08
212
126
265
275
347
147
Fev./08
233
130
262
324
379
165
Mar./08
237
133
260
326
396
161
1Média ponderada dos grupos de commodities.
2Óleos e gorduras comestíveis de origem animal e vegetal.
Fonte: FAO (2008).

Figura 1 - Índice1 de Preços dos Alimentos e Bebidas, Brasil, Janeiro de 2000 a Maio de 2008. 

1Jan./2000 = 100.
Fonte: : IPEAdata. Disponível em: <http://www. ipeadata.gov.br>. Acesso em: jun. 2008.

            É possível que essa evolução diferenciada dos preços dos alimentos se deva ao melhor desempenho da produção nacional: o ritmo de produção dos principais grupos de alimentos no Brasil é bem maior que no restante do mundo, com exceção de raízes e tubérculos e óleos vegetais.

            No caso dos cereais, principal grupo dos alimentos, enquanto a produção brasileira crescia à taxa média anual de 2,4% na década de 1990 e 3,4% entre 2000 e 2006, a produção mundial aumentou às taxas de 1,0% e 1,8%, respectivamente. Em se considerando todo o período, a taxa de crescimento da produção brasileira de cereais foi 3,3 vezes a mundial (Tabela 2).

Tabela 2 - Taxa Média Anual de Crescimento da Produção de Alimentos, 1990-2006
(em %)

Grupo de produtos
Brasil
Mundo
1990-2000
2000-2006
1990-2006
1990-2000
2000-2006
1990-2006
Cereais
2,4
3,4
3,3
1,0
1,8
1,0
Carnes
6,1
4,8
5,6
2,7
2,6
2,7
Lácteos
3,2
4,0
3,4
0,8
2,1
1,4
Oleaginosas
5,8
7,7
7,6
3,7
5,3
4,0
Raízes e tubérculos
-1,2
2,6
0,6
1,8
1,0
1,6
Açúcar
9,6
9,5
8,7
2,4
2,0
2,3
Óleos vegetais
4,7
5,5
5,0
4,4
5,4
4,6
Fonte: FAOSTAT (2008).

            Na produção de açúcar a diferença a favor do Brasil é quase o quádruplo: taxa anual de crescimento de 8,7% contra 2,3% entre 1990 e 2006. Com isso, de participação da ordem de 7% na produção mundial em 1990, o país passou a quase 20% no período recente.

            Do melhor desempenho brasileiro na produção de carnes, com ritmo de crescimento maior que o dobro do mundial, resultou que, de 4,3% da produção mundial em 1990, o país evoluiu para mais contribuição com 7% a partir de 2003. Oleaginosas são o grupo de produtos que contribui com parcela mais elevada: partiu de cerca de 6% da produção mundial no início da década de 1990, chegou ao pico de 9,5% em 2003 e terminou a série com 8,2% do total (Figura 2).

            Para os lácteos é nítida a tendência de crescimento da participação brasileira: de menos de 3% da produção mundial evoluiu para 4% entre os extremos da série, praticamente sem variabilidade.

            O Brasil cresceu também na produção de cereais, mas este é o grupo de menor participação brasileira. Dos mais de 2 bilhões de toneladas produzidas no mundo em 2006, o Brasil contribuiu com cerca de 64 milhões de toneladas, o equivalente a pouco mais de 2,5% do total.

Figura 2 - Participação do Brasil na Produção Mundial de Alimentos, 1990-2006. 

Fonte: FAOSTAT (2008).

            No passado se dizia que o Brasil era o celeiro do mundo, porém, por muito tempo isso não passou de retórica dos próprios brasileiros. Hoje a realidade é outra: especialistas do mundo todo vêem o País como o provedor mais capacitado para arrefecer a crise de alimentos, e parece que já vem cumprindo essa tarefa com razoável desempenho. O valor de suas exportações de produtos agrícolas vem crescendo a taxas de quase 20% ao ano5.

            Observe-se que o Brasil passou a exportar em ritmo acelerado até mesmo produtos cujo valor das exportações era irrisório no passado. Destaque-se que, entre 2000 e 2007, os cereais (capítulo 10) e os produtos lácteos (capítulo 4) registraram taxas anuais de crescimento de 99,0% e 45,5%, respectivamente. Comparando-se os 5 meses iniciais de 2007 e 2008, as taxas de crescimento são ainda maiores: 111,7% para cereais e 140,0% para lácteos (Tabela 3).

            O grupo de carnes (capítulo 2) teve expansão do valor exportado à taxa de 29,1% nos últimos 7 anos: de US$1,6 bilhão em 2000 cresceu para US$9,6 bilhões em 2007 e nos 5 meses iniciais de 2008 já alcançou US$4,8 bilhões, a despeito das restrições impostas às exportações brasileiras de carne por importantes importadores, como é o caso da União Européia.
 
            No conjunto as exportações brasileiras de alimentos cresceram à taxa média anual de 19,2%: de US$12 bilhões, em 2000, evoluíram para quase US$40 bilhões em 20076. Nos 5 meses iniciais de 2008 essas exportações totalizaram US$19,2 bilhões, correspondentes a um acréscimo de 31,6% sobre igual período do ano anterior. Esses números parecem indicar que o Brasil vem fazendo sua parte no abastecimento do mundo.

Tabela 3 - Valor das Exportações, Brasil, 2000, 2007 e 2008

NCM  Descrição do Capítulo NCM
US$ milhão
Part. %1
US$ milhão
Part. %3
2000
2007
20072
2008 2
01 Animais vivos
5,7
284,9
74,9
37,2
138,2
272,0
02 Carnes e miudezas, comestíveis
1.605,6
9.613,3
29,1
3.602,0
4.821,0
33,8
03 Peixes, crustác., moluscos e outs. aquáticos
227,5
284,4
3,2
89,0
75,3
-15,4
04 Leite e laticínios, ovos de aves, mel natural, etc
25,0
345,7
45,5
94,5
227,0
140,1
05 Outros produtos de origem animal
76,5
273,3
19,9
106,1
144,8
36,4
06 Plantas vivas e produtos de floricultura
12,0
35,3
16,6
12,5
12,1
-3,2
07 Prod. hortícolas, plantas, raízes, etc. comestíveis
22,3
52,0
12,9
19,7
6,6
-66,6
08 Frutas, cascas de cítricos e de melões
370,2
915,4
13,8
292,7
331,9
13,4
09 Café, chá, mate e especiarias
1.681,3
3.604,2
11,5
1.437,7
1.631,5
13,5
10 Cereais
16,5
2.042,6
99,0
404,1
855,3
111,7
11 Prod. indústria de moagem, malte, amidos, etc.
9,6
52,1
27,2
20,4
19,1
-6,1
12 Sementes e frutos oleag., grãos, sementes, etc.
2.212,9
6.818,7
17,4
2.629,6
4.314,0
64,1
13 Gomas, resinas e outros sucos e extratos vegetais
28,6
51,6
8,8
19,6
28,9
47,3
14 Materias p/ entrançar e out. prod. origem vegetal
3,9
2,3
-7,2
0,7
2,0
167,5
15 Gorduras, óleos e ceras animais ou vegetais, etc
468,7
1.936,3
22,5
586,9
1.096,7
86,9
16 Prepar. de carne, de peixes ou de crustáceos, etc.
337,3
1.530,8
24,1
659,5
754,9
14,5
17 Açúcares e produtos de confeitaria
1.294,4
5.284,3
22,3
1.987,0
1.653,5
-16,8
18 Cacau e suas preparações
163,2
364,9
12,2
127,3
156,9
23,2
19 Prepar. à base de cereais, farinhas, amidos, etc.
52,4
198,4
21,0
52,3
111,6
113,6
20 Prep. de produtos hortícolas, de frutas, etc.
1.134,5
2.470,8
11,8
1.069,3
905,9
-15,3
21 Preparações alimentícias diversas
571,9
860,5
6,0
312,6
427,8
36,9
22 Bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres
105,2
1.557,9
47,0
642,5
731,3
13,8
23 Resíduos e desperdícios das ind. alimentares, etc.
1.713,3
3.190,6
9,3
1.144,3
1.721,8
50,5
24 Fumo (tabaco) e seus sucedâneos manufaturados
841,5
2.262,4
15,2
666,5
788,4
18,3
50 Seda
50,7
37,0
-4,4
11,7
14,7
25,5
51 Lã, pelos finos/grosseiros, fios e tecidos de crina
22,2
29,8
4,3
14,2
14,3
0,7
52 Algodão
262,9
830,3
17,9
205,8
302,0
46,8
53 Outras fibras têxteis vegetais, fios de papel, etc.
22,3
52,5
13,0
25,4
20,5
-19,3
  Soma4
13.338,2
44.982,2
19,0
16.271,0
21.307,8
31,0
  Alimentos5
12.011,8
39.889,9
18,7
14.654,5
19.284,4
31,6
  Total geral
55.118,9
160.649,1
16,5
60.095,8
72.051,4
19,9
1Taxa anual de crescimento.
2Janeiro a maio.
3Variação entre janeiro e maio de 2007 e de 2008.
4Engloba os capítulos dos principais produtos agrícolas.
5Soma, exclusive capítulos 1, 6, 14, 22, 24, 50, 51, 52 e 53.
Fonte: MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR - MDIC/SECRETARIA DE COMÉRCIO EXTERIOR - SECEX. Sistema de análise das informações de comércio exterior (ALICE). Disponível em: <http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br>. Acesso em: jun. 2008.

___________________________
1Na América Latina os países sob insegurança alimentar são: Bolívia, República Dominicana, Equador, Haiti e Nicarágua.
2FAO'S GLOBAL INFORMATION. Crop prospects and food situation. n. 2. Apr. 2008. Disponível em: <ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/010/ai465e/ai465e00.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2008a.
3FAOSTAT database. Disponível em: <http://apps.fao.org/subscriber>. Acesso em: jun. 2008b.
4O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) é baseado na cesta de consumo do assalariado urbano que recebe entre 1 e 6 salários mínimos. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) abrange as famílias urbanas com rendimentos mensais compreendidos entre 1 e 40 salários mínimos, qualquer que seja a fonte de rendimentos. Ambos têm a coleta de preços entre os dias 1º e 30 de cada mês. Entre 2000 e maio de 2008, os preços da cesta de alimentos do IPCA aumentaram 82,1% e os do INPC, 86,9%.
5Os cálculos foram feitos a partir das informações disponíveis em MDIC/SECEX, por capítulo da Nomenclatura Comum do MERCOSUL (NCM). A maior parte dos produtos agrícolas se encontra nos capítulos 1 a 24 e 50 a 53.
6Foram classificados como alimentos os primeiros 23 capítulos da NCM, exclusive 1, 6, 14 e 22. Naturalmente nesse grupo há produtos que têm outra destinação.

Palavras-chave: crise de alimentos, exportação, segurança alimentar, comércio exterior.

Data de Publicação: 01/07/2008

Autor(es): Maria Auxiliadora de Carvalho (macarvalho@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor