Produção de Commodities e Segurança Alimentar no Brasil

 

O Brasil, a partir da década de 19901, se consolidou como um país agroexportador, dando preferência para a produção de commodities, principalmente grãos e gado, avançando em grandes áreas para produzi-las no Centro-Oeste e na região conhecida como Matopiba (que inclui os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Por outro lado, a segurança alimentar e nutricional (SAN), a partir da recriação em 2003 do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)2, assumiu papel fundamental na política de combate à fome. Entretanto, ele foi extinto em janeiro de 2019 pelo atual presidente da república3, apontando o descaso com o tema que já vinha sendo preterido desde o governo do presidente Michel Temer em 2016. O fato é que, se sua extinção já era um problema sério naquele momento, na atual conjuntura se tornou ainda mais grave no enfretamento da questão.

Esse modelo definido pelo governo federal marcado pelo descaso com a SAN tem trazido cada vez mais problemas para a população que tem sido alijada de ter uma SAN garantida, fato acentuado pela crise econômica que o país enfrenta no momento, com alta no preço dos alimentos, causada pela inflação generalizada que é motivada por diversos fatores como câmbio desfavorável, guerra entre Rússia e Ucrânia, alta dos preços do diesel e da gasolina, todos fatores que impactaram fortemente os preços dos alimentos.

A agropecuária tem elevada dependência da compra externa de insumos (fertilizantes, medicamentos etc.). No caso dos fertilizantes, com a falta do produto em função da dependência de importações da Rússia e da suspensão de suas exportações para o mundo, associada à baixa produção desses produtos no Brasil, o problema se tornou gravíssimo. No caso da soja e do milho, que são alimentos para os animais da pecuária em geral, sua formação de preços se dá com base nas cotações externas dos dois produtos, impactando os preços praticados internamente. A alta do combustível também é um item que afetou o custo do setor, pois o transporte dos produtos agrícolas é feito basicamente por rodovias.

Esse cenário, juntamente com o impacto da pandemia da covid-19 na economia, que levou à ampliação considerável do número de desempregados, à precarização do trabalho, ao crescimento da população de rua, o aumento da informalidade e a redução de salários, trouxe o crescimento da insegurança alimentar e nutricional (IAN) da população, exigindo que o governo investisse em ações efetivas para viabilizar a SAN do país, fato que não ocorreu.  O que deveria acontecer, na verdade, era ter garantido um modelo que desse maior foco à garantia de alimentação ao povo, ou seja, um país com soberania alimentar.

Em 2020, segundo Mitidiero Junior e Goldfarb, o Brasil teve aumentos expressivos da produção agropecuária e ao mesmo tempo conviveu com altas dos preços agrícolas, que se exacerbaram desde 2021, diante do cenário econômico caótico do país4. Cabe lembrar que a atividade agrícola não parou e que o impacto da pandemia no setor rural foi bem mais ameno que na área urbana.

Os autores questionam se o agro, que é considerado tão importante para o país e tão desenvolvido, “não produz com foco no abastecimento do mercado interno?”5. Segundo eles,

a inserção subalterna do Brasil no mercado internacional, a falta de posição do governo federal em assegurar a soberania alimentar e a deterioração do real frente ao dólar fizeram com que compradores estrangeiros, munidos de dólares, comprassem parte importante dos alimentos que escassearam no mercado interno6.

Entre esses alimentos destacam-se as carnes, especialmente a bovina, que no mercado interno está com disponibilidade escassa e com preços elevadíssimos, devido à preferência do pecuarista por exportar, onde pode lucrar mais.

Isso aponta uma postura irresponsável do governo federal em não garantir a SAN da população brasileira, ainda mais em um momento crítico pelo qual passa o país. Ressalte--se, no entanto, que esse fato vem ocorrendo há anos, pois a alta dos preços das commodities alimentares, somado aos incentivos que vem sendo dados para as exportações, estimula esse setor a exportar seus produtos.

O professor da UFRRJ, Renato Maluf, já alertava em 2020 que

as desigualdades sociais aparecem nas questões que estão na ordem do dia, a saber, os riscos de desabastecimento, elevação de preços, dependência do transporte de alimento em longas distâncias e comprometimento mesmo que parcial da própria atividade produtiva industrial e agrícola7.

Esses pontos ressaltados já mostravam que, nesse momento de pandemia de covid-19, havia necessidade de uma política nacional de abastecimento que oferecesse diretrizes ágeis para enfrentamento dos problemas advindos da necessidade de se restringir a circulação das pessoas e as atividades econômicas, que levaram ao crescente desemprego e a problemas de acesso aos alimentos.

Estudo divulgado em 8 de junho de 20228, inquérito feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSAM), aponta que desde 2016 o Estado brasileiro atuou no sentido de retirar direitos sociais, econômicos e ambientais. Um deles diretamente afetado foi o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), agravado pela má condução da política da econômica, de saúde pública e políticas sociais insuficientes para enfrentar os desafios da pandemia no país, aumentando ainda mais as desigualdades.

O inquérito, que foi aplicado em 12.745 domicílios das 27 unidades da federação, entre novembro de 2021 e abril de 2022, constatou dados alarmantes: 41,3% dos domicílios estavam em situação de IAN e 28,0% tinham incerteza quanto ao acesso aos alimentos e de sua qualidade (IAN leve), sendo que a restrição quantitativa ocorria em 30,1% dos domicílios - entre esses, 15,5% com fome (IAN grave). Isso representava 33 milhões de pessoas em situação de fome (IAN grave), situação presente em 43% das famílias com renda de até um quarto do salário mínimo9.

O cenário atual é de desemprego acentuado10, com pagamento de salários inferiores ao de antes da pandemia11, e de redução da renda da população de parte da classe média, que tinha ascendido com o crescimento econômico que o país havia tido antes de 2015.

Deve-se lembrar que políticas públicas já estabelecidas foram abolidas ou alteradas. É o caso da extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que estabelecia compras do governo da agricultura familiar, e do Bolsa Família, que foi substituído pelos programas Alimenta Brasil e Auxílio Brasil, mais frágeis e de menor alcance no atendimento da população. Ainda houve má gestão do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)12, que deixou de atender estudantes que estiveram afastados da escola na pandemia.

A falta de políticas públicas voltadas à SAN e de outras de apoio indireto a esse tópico no país, além da despreocupação com a parte da população mais fragilizada nesse momento, tem um lado perverso quando se pensa que, apesar da crescente fome e da IAN de parte significativa dos brasileiros, a alimentação da população tem sido preterida em função de uma pauta agroexportadora que aparentemente garante ganhos ao país, mas que de fato beneficia apenas setores primários do agronegócio.

O impasse que se estabelece é entre as commodities e a segurança alimentar. Os programas de governo não têm se voltado a trabalhar essa questão. Se por um lado a questão da transferência de renda do Bolsa Família foi alterado, para garantir a distribuição da Renda Básica de Emergência criada na pandemia, as questões que envolvem estratégias de abastecimento alimentar não ocorreram. Não foram colocados na pauta, como necessidade premente para garantir o acesso ao alimento, programas efetivos que possam afiançar preços mais baixos e garantia de acesso ao alimento à população das periferias, a exemplo das implantadas no governo Montoro (1993-1996) - hortas comunitárias e domésticas, feiras do produtor, distribuição de cestas básicas, organização de grupos de compra13, 14; banco de alimentos; estoques reguladores; e restabelecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que fortalece a agricultura familiar que, além de outras contribuições, destina alimentos às pessoas em situação de IAN e àquelas atendidas pela rede socioassistencial e pelos equipamentos públicos de alimentação e nutrição15.

Resta perguntar: a condução dessa estratégia de fortalecer as exportações em oposição à garantia da segurança alimentar é o melhor caminho ou a melhor estratégia para um governo seguir? É isso que o país precisa: termos um agro forte com uma população faminta? Não é uma falácia acreditar que basear nossa economia num modelo de exportação de commodities possibilita o crescimento do país e beneficia a população?

O momento é de reflexão e de ação. Resta saber qual a possibilidade de isso acontecer no governo atual. Parece que só a mudança de perspectiva e de parâmetros que priorizem a garantia ao acesso aos alimentos, ao abastecimento interno e ao consumo doméstico, assim como numa política de preços e de formação de estoques, pode garantir um olhar para a população miserável e abandonada do país.

 

 

1EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA. Visão 2030: o futuro da agricultura brasileira, Brasília, 2018, 212p. Disponível em: https://www.embrapa.br/documents/10180/9543845/Vis%C3%A3o+2030+-+o+futuro+da+agricultura+brasileira/2a9a0f27-0ead-991a-8cbf-af8e89d62829. Acesso em: 7 jun. 2022.

 

2O CONSEA foi criado em 1993, passando a funcionar efetivamente em 1994 no governo Itamar Franco e desativado em 1995. Em 2003 foi reativado. In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Participação em foco. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/participacao/noticias-do-ipea/286-conselho-ligado-ao-governo-escolhe-lula-como-presidente-de-honra-3#:~:text=O%20Consea%20(Conselho%20Nacional%20de,governo
%20Lula%2C%20ele%20foi%20reativado
. Acesso em: 5 jul. 2022.

 

3BRASIL. Medida provisória n. 870, de 1 de janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 jan. 2019. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv870.htm. Acesso em: 21 jan. 2019.

 

4MITIDIERO JUNIOR, M. A.; GOLDFARB, Y. O Agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. Mudança climática, energia e meio ambiente, Associação Brasileira de Reforma Agrária; Friedrich Ebert Stiftung. 40p. Set 2021. Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/18319-20211027.pdf. Acesso em: 3 maio 2022.

 

5Op. cit. nota 4.

 

6Op. cit. nota 4.

 

7MALUF,0 R. S. Comer em Tempos de pandemia e após. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; Programa da Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade; Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. 7p. 03 abr. 2020. Disponível em: https://portal.ufrrj.br/wp-content/uploads/2020/04/MalufR-Comer-em-tempos-de-pandemia-e-ap%C3%B3s.pdf.Acesso em: 2 jun. 2022.

 

8REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. II VIGISAN - Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf. Acesso em: 9 jun. 2022.

 

9Op. cit. nota 8.

 

10AGÊNCIA IBGE. Noticias.  Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/32622-desemprego-cai-para-12-1-no-trimestre-encerrado-em-outubro. Acesso em: 5 jul. 2022.

 

11DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SÓCIO ECONÔMICOS - DIEESE. Inflação, conflito distributivo e escolhas do governo. Nota Técnica 264, dezembro 2021. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2021/notaTec264InflacaoConflitoDistributivo/index.html?page=8. Acesso em: 5 jul. 2022.

 

12Op. cit. nota 8.

 

13CROCETTA, I. Manual de Equipamentos Varejista – Uma proposta viável, Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo - Coordenadoria de Abastecimento e Prefeitura Municipal de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, sem data. 72 p.

 

14SAASP-COORDENADORIA DE ABASTECIMENTO. Programas de Comercialização de distribuição de cestas básicas: alguns pontos para discussão. Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo - Coordenadoria de Abastecimento, São Paulo, 1992. 8 p. e 12 anexos.

 

15COMPANHIA BRASIELIRA DE ABASTECIMENTO. Programa De Aquisição De Alimentos – PAA. Disponível em: https://www.conab.gov.br/images/arquivos/agricultura_familiar/Cartilha_PAA.pdf. Acesso em: 7 jun. 2022.


Palavras-chave: commodities, segurança alimentar e nutricional, produção agropecuária, abastecimento alimentar, pandemia.

 

 

 

 

 

 

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

SILVA, R. de O. P. e. Produção de Commodities e Segurança Alimentar no Brasil. Análises e Indicadores do Agonegócio, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 1-6, jul. 2022. Disponível em: link. Acesso em: dd mmm. aaaa.


Data de Publicação: 15/07/2022

Autor(es): Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor