Oportunidades e Desafios à Comercialização de Produtos da Sociobiodiversidade do Estado de São Paulo


Este texto traz considerações da “Roda de Conversa Desafios e Oportunidades da Sociobiodiversidade no Estado de São Paulo - aspectos da comercialização”1, realizada em novembro de 2022, por órgãos estaduais de pesquisa e assistência técnica e extensão rural do estado de São Paulo: o Instituto de Economia Agrícola (IEA), Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) e a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI).

Celebrando as comemorações dos 80 anos do IEA, participaram do segundo dia do evento: Ênio Carlos Moura de Souza, analista da agricultura familiar e sociobiodiversidade da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); Felipe Almeida, secretário de Agricultura da Prefeitura de Mogi das Cruzes; Gabriel Menezes, presidente e empreendedor social do Instituto AUÁ; Ana Rosa dos Santos Barbosa, agricultora presidente da Associação dos Bananicultores e Produtores Rurais da Comunidade Tradicional do Sertão do Ubatumirim (ABU); e Amen Khalil El Ourra, Produtor Orgânico da Cooperativa dos Produtores Rurais de Juquitiba e Região (COOPJUQUI). A roda teve a mediação de Felipe Pires de Camargo e a relatoria de Soraia de Fátima Ramos, pesquisadores do IEA.

Entre 2001 e 2021, o Brasil sofreu expressivas reduções de áreas florestais. Se considerados os dez principais países para perda de floresta primária tropical úmida, o país ocupa a primeira posição. A situação reflete a permanência de modelos insustentáveis de produção agrícola e do aumento de incêndios florestais desde 20162.

Assim, o objetivo da roda de conversa e deste artigo é dar visibilidade para as ações do poder público e de organizações sociais, dirigidas à proteção das florestas nativas por meio do uso econômico da sociobiodiversidade. A ênfase será dada aos desafios, potenciais e oportunidades à dimensão da comercialização, setor fundamental para ampliar o acesso a uma alimentação saudável, diversificada, apoiada em sistemas técnicos de produção em harmonia com a preservação ambiental e os hábitos e tradições culturais.

No Brasil do início do século XXI, a sociobiodiversidade – a inter-relação entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais3 - revelou-se como estratégia de uso sustentável da biodiversidade para o combate à fome, promoção da justiça social, geração de renda e fortalecimento da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais. Em 2009, o governo brasileiro e a sociedade civil lançaram o Plano Nacional de Promoção das Cadeias dos Produtos da Sociobiodiversidade4.

O plano incluía eixos de fomento e estímulo à comercialização dos produtos da sociobiodiversidade. Previa também: a criação de feiras locais e centrais de comercialização (comércio eletrônico); estímulo às redes da sociobiodiversidade, articulando as organizações rurais e urbanas; investimentos em infraestrutura e logística para o armazenamento, transporte e comercialização; e linhas de crédito à comercialização.

Atualmente, ainda são inúmeros os desafios para a comercialização de produtos da sociobiodiversidade advindos do extrativismo e da agricultura familiar no Brasil. Questões estruturantes como informalidade, gestão, infraestrutura, escala de produção, pulverização da produção, tecnologia, escoamento, armazenamento, organização social dos produtores e informação assimétrica são entraves ao crescimento da atividade.

As oportunidades ao comércio de produtos da sociobiodiversidade requer o correto manejo da produção, a garantia da conservação ambiental, e o respeito e estímulo ao desenvolvimento de cadeias de produção alicerçadas nas comunidades tradicionais. Portanto, se faz necessário conhecer, aperfeiçoar e divulgar os mecanismos e as políticas de produção, comercialização e consumo de alimentos oriundos dos biomas brasileiros.

A Conab, o órgão executor de programas e ações do governo federal, adota estratégias de inclusão social com ênfase na geração de emprego e renda contribuindo para o bem-   -estar de comunidades, em especial, as populações em situação de insegurança alimentar e nutricional. Exemplo de iniciativas de incentivo à comercialização dos produtos da sociobiodiversidade são o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMBio).

A PGPMBio5 é um programa de subvenção que pressupõe um mercado existente e uma negociação privada. Se o preço de venda estiver abaixo do mínimo estabelecido pelo governo federal, o produtor tem o direito de solicitar a diferença do valor (preço mínimo menos o preço de venda) à Conab. O produtor garantirá a renda ao receber o valor mínimo – com base no custo variável de produção. A iniciativa busca eliminar os entraves relativos aos preços. Outros desafios seguem carentes de instrumentos assertivos e investimentos como são os serviços ecossistêmicos, a logística e o armazenamento.

Em São Paulo, os produtos contemplados pelo PGPMBio são o pinhão e a juçara, com potencial de expansão para outras cadeias. A Conab divulga o potencial da sociobiodiversi- dade com informações conjunturais de mercado e o relatório de operações executadas pela PGPMBio, publicando o Boletim da Sociobiodiversidade (Figura 1).

 

As frutas nativas da Mata Atlântica são, praticamente, desconhecidas da população. Um dos principais desafios é vender um produto para um mercado que ainda não está estruturado. Há potencial de comercialização para as espécies como cambuci, uvaia, juçara, jerivá, cabeludinha, caraguatá, cereja do rio grande, araçá, grumixama etc., que são saborosas, saudáveis e sustentáveis no cultivo agroecológico.

No estado de São Paulo, a construção do ecomercado das espécies nativas da Mata Atlântica demanda políticas públicas, maiores investimentos e conhecimento científico sobre o manejo agroecológico e as características físico-químicas das espécies e seus produtos. Para viabilizar a comercialização são necessários, também, equipamentos e infraestrutura, desde a colheita, beneficiamento, até a logística. Ademais, é essencial implementar ações para a “descolonização cultural”, de modo que a população tenha conhecimento sobre as espécies da sociobiodiversidade e desejo de consumi-las.

Desde 2009, o Instituto Auá coordena a Rota do Cambuci, um movimento visando conservar a Mata Atlântica pela agroecologia, envolvendo agricultores, gestores públicos, empresários da gastronomia e turismo, pesquisadores científicos, sociedade civil organizada e produtores artesanais (geleias, biscoitos e licores). A fruta cambuci é a ponta de lança para a valorização econômica das frutas nativas em São Paulo. A Rota nasceu como um roteiro de festivais gastronômicos e se tornou uma proposta de desenvolvimento territorial, a partir da identidade da Serra do Mar com a Mata Atlântica (Figura 2).

 

A partir da Rota do Cambuci, o Instituto Auá trabalha iniciativas à produção e ao consumo de nativas com publicações de receitas e orientações ao cultivo agroecológico (Figura 3). O projeto “Pomares Mata Atlântica” realiza Planos de Manejo Agroecológico, engajamento, capacitação e assistência técnica de agricultores, e plantios com metodologia de Sistemas Agroflorestais. Possui um banco de áreas de 200 hectares, com 150 produtores, e mais de 70 mil mudas nativas com fins econômicos plantadas.

 

O Instituto Auá atua em empreendimentos para construção de relações de mercado mais justas e sustentáveis. O “Empório Mata Atlântica” é a marca comercial de produtos sustentáveis (frutos, polpas e sorvetes) de mais de 15 espécies nativas e de pontos de venda (PDV). Já o “Armazém Biomas” é um galpão com câmaras frias para apoio logístico e comercial aos empreendimentos: foodservice, varejo, indústrias, hotelaria, e-commerce, brinde corporativo, merenda escolar e exportação. Já a “Rede de Ecomercado da Mata Atlântica”, com o apoio da Fundação Banco do Brasil, investiu em nove grupos do estado de São Pulo com equipamentos, capacitações e assistência técnica agroecológica, assessorias jurídica, de comunicação estratégica e de regularização das agroindústrias.

No município de Ubatuba, a liderança comunitária e agricultora nativa do sertão do Ubatumirim, a presidente da Associação dos Bananicultores e Produtores Rurais da Comunidade Tradicional do Sertão do Ubatumirim (ABU), Ana Rosa dos Santos Barbosa, salienta as compras públicas para a venda de produtos nativos às escolas locais. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é um importante instrumento de comercialização incentivando a agricultura familiar na produção e venda de banana, cambuci, mandioca, inhame e farinha de mandioca. O grupo participa da festa anual da juçara, da tradicional festa da mandioca, e de vendas no comércio local, feiras e redes.

Duas questões de infraestrutura primordiais para fortalecer a comercialização dos produtos da sociobiodiversidade da comunidade de Ubatumirim são a qualidade da água e o acesso à energia elétrica. A líder da ABU ressalta que o abastecimento adequado de água é valioso para deslanchar a produção dos produtos artesanais. A prefeitura prometeu apoiar os agricultores e efetuar a adequação do fornecimento da água com recursos de uma “taxa dos turistas”.

Os problemas relativos à energia elétrica são a falta ou oscilação do fornecimento e o alto custo. O primeiro causa a perda ou redução de qualidade dos produtos armazenados, e a ABU pretende resolver o problema com a compra de gerador. Os altos custos com o pagamento da conta de luz devem ser enfrentados com a instalação de placas solares. Durante a safra de juçara, os trabalhos são intensos no preparo e armazenamento da polpa e do sorvete (Figuras 5 e 6) com o uso de duas câmaras frias, batedeiras, triturador e selador. Durante esse período, o pagamento corresponde a R$6 mil de conta de luz por mês. Na entressafra, o valor da conta de luz cai para R$2 mil.

Outros dois aspectos destacados são os desafios do associativismo e a evasão dos jovens do campo. Se na época de sua criação chegou a somar 60 famílias, a ABU atualmente reúne 12 famílias. Alguns antigos associados estão querendo voltar em razão da boa fase. Contudo, os jovens estão “abandonando” a área rural à procura de outras atividades. A esperança é que a partir da consciência ambiental e da percepção da importância da agricultura como produtora de alimentos possa haver o entendimento da importância do trabalho dos agricultores familiares como produtores de alimentos saudáveis, atraindo os jovens ao trabalho com suas famílias na ABU.

 


 

De Mogi das Cruzes, o secretário municipal Felipe Almeida enfatizou o trabalho da gestão atual e a importância das políticas públicas para o desenvolvimento rural sustentável. O agrário-rural-agrícola deve ser considerado no contexto de outros setores e geografias como industriais e urbanos; e as políticas públicas devem ser construídas intersetorialmente e com o máximo de participação democrática possível.

O PNAE e o PAA são canais comercialização significativos aos produtores rurais e de promoção ao acesso à alimentação saudável. A prefeitura de Mogi das Cruzes fortalece as compras institucionais ao identificar problemas e dialogar com os múltiplos atores: Secretaria de Assistência Social, Departamento de Alimentação Escolar da Secretaria Municipal de Educação, as cooperativas de agricultores familiares, grupos informais, sindicatos, universidades, conselhos e órgãos como Sebrae e CATI.

Um dos desafios era melhorar a elaboração dos editais, a logística de fornecimento e a entrega dos alimentos nas escolas, além de definir a composição dos preços finais a serem pagos aos agricultores. Solucionados os desafios, Mogi das Cruzes conseguiu ultrapassar os 30% exigidos pela lei PNAE e atingir o índice de 46% de aquisições de alimentos da agricultura familiar que inclui frutas como a goiaba, caqui e tangerina poncã, alimentando, aproximadamente, 48 mil alunos. São sete cooperativas envolvidas no PNAE local, sendo três do município, duas da região do Alto Tietê e outras duas de outros estados do país.

No PNAE de Mogi das Cruzes participa um grupo informal produtor de cogumelo shimeji. Esta é uma novidade no cardápio da alimentação escolar. A cidade é a maior produtora nacional dessa cadeia produtiva. Esse privilégio de incluir novos produtos no cardápio da alimentação escolar abre possibilidades para que os frutos da Mata Atlântica, como o cambuci e a polpa da juçara, sejam integrados. Contudo, é necessário superar alguns desafios, como a realização dos testes de aceitabilidade, ter infraestruturas para a armazenagem dos perecíveis e qualificar os servidores para manipulação dos alimentos.

Mogi das Cruzes desenvolveu uma robusta política pública nos anos pandêmicos. Por meio de recursos financeiros do PAA Cesta Verde, envolvendo governos estadual e federal, conseguiram fomentar a agricultura familiar e garantir a segurança alimentar de mais de 1.400 famílias vulneráveis. A ação com o projeto Quitanda Social foi reconhecida pela ALESP, e recebeu o prêmio Josué de Castro no ano de 20216.

A expertise não foi suficiente, porém, para resolver a escassez de recursos federais e estaduais para o PAA em anos recentes. A administração de Mogi das Cruzes criou, então, um PAA municipal para as famílias em estado de vulnerabilidade. O Programa Mogiano de Aquisição de Alimentos terá como fonte de recursos o preço público pago pelos permissionários dos equipamentos da Secretaria de Agricultura municipal.

No Sítio Nó de Pinho da COOPJUQUI, o produtor Amen destaca a transição da propriedade de lazer e que estava degradada com a produção de eucalipto para o sucesso com o plantio e comercialização de frutas orgânicas. Um dos desafios aos produtores de amora preta, acerola, mirtilo e grumixama (Figura 6) são os altos custos da certificação e as exigências da caderneta de campo para manter o selo de orgânico. O turismo rural é uma oportunidade para sensibilização sobre as qualidades das nativas como o cambuci e a juçara.

 

Os incentivos à criação de mercados sustentáveis e de instrumentos de comercialização aos produtos e serviços da sociobiodiversidade alicerçam as cadeias produtivas. A valorização das práticas e saberes da agricultura familiar, dos povos e comunidades tradicionais é condição para que seja assegurada a autonomia, os interesses, direitos e qualidade de vida dessas populações e a consolidação dos novos mercados.

Os circuitos curtos de comercialização, abrangendo diversas modalidades de vendas diretas, como as compras institucionais da agricultura familiar, afirmam-se como oportunidades para garantir a comercialização de uma produção agrícola responsável da perspectiva social, econômica e ambiental. O governo estadual e as prefeituras municipais podem criar e regulamentar mecanismos de incentivo ao abastecimento, como as feiras de produtores, além de modernizar equipamentos públicos, como os mercados municipais.

Os bens e serviços derivados da riqueza da biodiversidade necessitam de um conjunto de políticas públicas, de modo a formar um plano para o uso social e econômico da sociobiodiversidade. As ações devem prever infraestrutura adequada para o beneficiamento (estradas, telefonia, rede elétrica), incentivo às agroindústrias, e ações com os consumidores, para que conheçam, valorizem e consumam as espécies nativas por serem a melhor opção de desenvolvimento econômico e segurança alimentar.

A Mata Atlântica requer cuidados mais eficientes para a conservação da sua sociobiodiversidade, através do impulsionamento e da viabilização de políticas públicas capazes de fortalecer o pequeno produtor rural. Deve contribuir para a fixação do agricultor familiar nestas áreas, uma vez que eles são o verdadeiro guardiões dos biomas. E, concomitantemente, garantir ações que corroboram a segurança alimentar e nutricional (SAN) e ao Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA).

  

1SECRETARIA DE AGRICULTURA E ABASTECIMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Roda de Conversa: Desafios e Potenciais da Sociobiodiversidade no Estado de São Paulo. 22 e 23 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=olAQ86QXjwo. Acesso em: 12 fev. 2023. 

2WORLD RESOURCES INSTITUTE. Top 10 Lists. Washington.  Disponível em:  https://research.wri.org/gfr/top-ten-lists. Acesso em: 12 fev. 2023. 

3BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, Ministério do Meio Ambiente – MMA, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Plano nacional de promoção das cadeias de produtos da sociobiodiversidade. Brasília, julho de 2009. Disponível em:  https://bibliotecadigital.economia.gov.br/bitstream/123456789/1024/1/Plano%20Sociobiodiversidade.pdf. Acesso em: 12 fev. 2023. 

4Op. cit. nota 3. 

5COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO - CONAB.  Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio). Brasília 26 de Outubro de 2017. Disponível em https://www.conab.gov.br/precos-minimos/pgpm-bio. Acesso em: 12 fev. 2023.

6PREFEITURA DE MOGI DAS CRUZES. Programa Quitanda Social conquista o 2º lugar no Prêmio Josué de Castro 2021. Mogi das Cruzes, 18 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.mogidascruzes.sp.gov.br/noticia/programa-quitanda-social-conquista-o-2-lugar-no-premio-josue-de-castro-2021. Acesso em: 12 fev. 2023.


Palavras-chave: agricultura familiar, agroecologia, segurança alimentar, biodiversidade.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

RAMOS, S. de F. et al. Oportunidades e Desafios à Comercialização de Produtos da Sociobiodiversidade do Estado de São Paulo. Análises e Indicadores do Agronegócio, São Paulo, v. 18, n. 2, fev. 2023, p. 1-10. Disponível em: colocar o link do artigo. Acesso em: dd mmm. aaaa.

Data de Publicação: 17/02/2023

Autor(es): Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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Ana Rosa dos Santos Barbosa (abu.ubatumirim@gmail.com) Consulte outros textos deste autor
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Felipe Monteiro de Almeida (felipe.smag@mogidascruzes.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Felipe Pires de Camargo (fpcamargo@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Gabriel Menezes (gabriel.menezes@aua.org.br) Consulte outros textos deste autor
Terezinha Joyce Fernandes Franca (terezinha.franca@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor