Pororoca na armazenagem: mito ou realidade?

            Com o crescimento seqüencial das recentes safras agrícolas (exceção da última), a expressão pororoca foi utilizada repetidas vezes por autoridades do Governo Federal e analistas setoriais para expressar os problemas que poderiam advir das deficiências da rede de armazenagem e do estado lastimável das estradas no Brasil. Acrescentem-se ainda as limitações verificadas nos portos graneleiros, casos de Santos e Paranaguá, em especial.
            Os números recordes esperados para a mais recente safra (2004/05) não se concretizaram, em decorrência da severa estiagem verificada na Região Meridional do País, mormente no Rio Grande do Sul e em parte do Paraná e do Mato Grosso do Sul, frustrando as lavouras de soja e milho que representam mais de 4/5 da produção de grãos e, por conseguinte, demandam a maior parte do espaço armazenador.
            A última estimativa da safra total de grãos, da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB)1, referente a junho de 2005, é de 112,4 milhões de toneladas. Confrontada com as estimativas iniciais de 131,9 milhões de toneladas, de dezembro de 2004, e de 119,1 milhões de toneladas da safra 2003/04, revela reduções de 14,8% e 5,7%, respectivamente. A soja quebrou 18,2% e o milho, 19,4 %, em relação à estimativa de dezembro último, enquanto o arroz subiu 5,2%.
            Graças a isso, as alegações daquelas autoridade e dos experts, a tão temida pororoca, não ocorreu, embora o transporte continue caótico e pressionando a estrutura de armazenagem. Via de regra, quanto maior a disponibilidade de transporte em termos de confiabilidade e freqüência, tanto menores serão as necessidades de recursos de armazenagem e vice-versa2.
            A produção de grãos saltou 62% de 1994 a 2003, enquanto a capacidade de armazenagem avançou apenas 7,4% no período. Mesmo assim, de modo geral não têm ocorrido problemas tão sérios na guarda de alimentos e fibras como se apregoa. Mas poderão ocorrer, caso continue o descompasso entre as duas variáveis: produção agrícola x capacidade de guarda3.
            Na realidade, os analistas setoriais quase sempre confrontam os dados de produção agrícola com a capacidade estática de armazenagem. Ocorre que, na prática, as safras não são coincidentes, por força da sazonalidade (produtos de verão e de inverno); não se colhe tudo ao mesmo tempo; nem toda quantidade colhida é guardada, pois substancial parcela é exportada prontamente e outra tem consumo imediato. Neste ano, especificamente, a comercialização tem sido lenta, por força das baixas cotações vigentes.
            Existem problemas históricos de localização e adequação das unidades. Em alguns estados, a rede ainda comporta construções antigas por conta da herança da lavoura cafeeira, como no Estado de São Paulo; a localização nem sempre acompanha a migração da agricultura e a capacidade de armazenagem nas propriedades ainda é pequena – cerca de 10%, atualmente, no país.
            A vantagem da armazenagem na propriedade é que ela diminui os entraves na logística ao permitir a comercialização em época mais oportuna, além de evitar congestionamentos no transporte e no descarregamento nas unidades armazenadoras, disponibilizando assim maior espaço para a guarda de produtos.
            Grandes países produtores de grãos, como os Estados Unidos e o Canadá, necessitam de estoques significativos de alimentos e contam com expressiva capacidade de armazenagem, em decorrência de invernos rigorosos, de estratégias de exportação e de políticas de segurança alimentar.
            No caso do Brasil, as novas áreas de ocupação agrícola, por serem as construções relativamente recentes, já são próprias para granéis. O mesmo ocorre nos estados do Sul do País, graças à tradicional agricultura de grãos (tabela 1).

TABELA 1 - Capacidade Estática de Armazenagem, por Região, Brasil, 2005
(tonelada)

Região
Convencional
%
Granel
%
Total
Centro-Oeste
5.852.380 
18 
27.218.720 
82 
33.071.100 
Nordeste
2.010.040 
36 
3.546.880 
64 
5.556.920 
Norte
1.217.090 
58 
894.740 
42 
2.111.830 
Sudeste
8.303.760 
48 
9.004.630 
52 
17.308.390 
Sul
8.343.420 
18 
37.070.650 
82 
45.414.070 
Brasil
25.726.690 
25 
77.735.620 
75 
103.462.310 
N. de unidades
7.107 
49 
7.297 
51 
14.404 
Fonte: CONAB (1o/7/2005).

            Estudo realizado no âmbito do IEA aponta as regiões mais carentes desta importante função de armazenagem e sugere investimentos contínuos, a fim de acompanhar a tendência crescente da produção agrícola brasileira em decorrência da sua competitividade no mercado internacional tanto de commodities quanto de carnes4.
            Grande atenção deve ser dada à região Centro-Oeste, área mais especializada na exploração de grãos, conforme consta de recente levantamento divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativo à safra de 2004, que totalizou 120,5 milhões de toneladas5.
            Ao agregar dados por cultura (lavoura) da pesquisa Produção Agrícola Municipal (PAM), de 2003, também do IBGE, constata-se que 14 municípios, dos 15 maiores produtores de grãos do Brasil, se localizam na região e nove deles pertencem ao estado de Mato Grosso, três são de Goiás e dois do Mato Grosso do Sul. Apenas o município de São Desidério (da Bahia), que ocupa a décima segunda colocação, não é dessa região. Soja e milho responderam por cerca de 75% do total de grãos colhidos.
            De fato, configura-se um gap logístico, quando confrontados os dados da capacidade estática de armazenagem com a produção total de grãos. A possibilidade de problemas futuros pode ser melhor compreendida quando se utilizam os dados da previsão de dezembro de 2003, referente à safra recorde de 2003/04 (130 milhões de toneladas). Se a previsão se confirmasse, aparentemente representaria um déficit de 30%!
            Contudo, por motivos já citados de sazonalidade, convém utilizar a capacidade dinâmica, com uso do fator 1,5 universalmente reconhecido. Assim, a capacidade de armazenagem (agora dinâmica) passaria a 150 milhões de toneladas, suficiente, pelo menos nas condições atuais, para abrigar (até com folga) a produção de grãos do Brasil; mesmo se forem considerados os estoques oficiais, que não têm sido de grande monta nos últimos anos, por força de contenções financeiras.
            Mesmo diante de tal situação, espera-se que continuem os investimentos nesta infra-estrutura para evitar futuros transtornos. Para isso, os agentes do agronegócio contam com recursos do Programa MODERINFRA, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e com outras fontes de financiamento, tais como Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO) Rural; PRODECOOP e BB Armazenagem. Este último tem a finalidade precípua de ampliar em 8 milhões de toneladas a capacidade de armazenagem, priorizando a construção de unidades menores por parte de produtores e cooperativas. Ampliação e melhoramentos de instalações também são passíveis de financiamentos.
            Um ponto importante e que merece atenção diz respeito ao atendimento dos requisitos técnicos definidos pela CONAB: do total de 14.097 armazéns cadastrados em 31/12/2004, com capacidade estática de 100,1 milhões de toneladas, das quais 25,3 milhões de toneladas para produtos embalados e/ou enfardados e 74,8 milhões de toneladas para granel, apenas 2.704 unidades (com capacidade de 23,3 milhões de toneladas) se enquadravam nos requisitos técnicos6. Isto denota que grande parte da rede de armazenagem deixa a desejar quanto à qualidade das instalações.
            Contudo, outras alternativas devem ser levadas em conta tomando como referência a relação custo-benefício na hora da escolha do investimento. Além dos modernos silos metálicos de alta tecnologia, de custos elevados, apropriados para escalas de produção relativamente maiores, podem ser consideradas as possibilidades de construção de unidades de alvenaria ou a aquisição de silos-bolsa, equipamentos prontamente disponíveis e de grande expressão na Argentina, onde já representam 10% da capacidade total de armazenagem. Mas no Brasil sua representatividade ainda não passa de 1%.
            Atualmente, por força da significativa redução da receita bruta da safra brasileira de 2004/05 e concomitante queda nas cotações internacionais das commodities, em razão das boas colheitas obtidas em âmbito mundial, os produtores estão receosos em contrair empréstimos para investimentos. Some-se a isto a crise política por que passa o País.
            No médio e longo prazos, poderá ocorrer a tão indesejada pororoca na armazenagem, caso o esperado crescimento da produção de grãos não seja acompanhado de correspondentes investimentos para a guarda e escoamento de produtos.7

_________________________
1CONAB: www.conab.gov.br
2 Ver, a respeito, CASTRO, N. de. Custos de transporte e produção agrícola no Brasil. Agricultura em São Paulo, SP, v. 49, t.2, p.87-109, 2002 e MARTINS, R. S. et al. Decisões estratégicas na logística do agronegócio: compensação de custos transporte-armazenagem para a soja no Estado do Paraná. Revista de Administração Contemporânea. Curitiba, v.9, n.1, p.53-78, jan./mar.2005.
3 NOGUEIRA JR, S.; TSUNECHIRO, A . Produção agrícola e infra-estrutura de armazenagem no Brasil. Informações Econômicas, São Paulo, v. 35, n.2, p.7-18, fev. 2005.
4 Ver nota 3.
5 Ver a notícia 'O município de Sorriso (MT) se destaca na produção de soja', de 29/06/05, publicada no site do IBGE: www.ibge.gov.br
6 CONAB. Relatório de atividades do gestor 2004. Brasília. 108p.
7 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-63/2005

Data de Publicação: 22/07/2005

Autor(es): Sebastião Nogueira Junior (senior@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Alfredo Tsunechiro (tsunechiro@uol.com.br) Consulte outros textos deste autor